Somente Deus

Quatro princípios para a vida

No início do século XXI, as pessoas, as relações humanas, a vida dos cristãos estão marcadas pelo que se designa de neoliberalismo. Há queixa generalizada acerca da falta de parâmetros. Tudo parece ser lícito e, onde coisas ilícitas ocorrem, a tendência é a de que não se assuma responsabilidade. O ser humano é quase que incentivado a se ver como vítima das ações de outros, sejam eles estruturas, pessoas, situações ou entidades. Há os que falam de uma tendência à “vitimização” e à “relativização”. Todo esse conjunto tem levado a que algumas palavras desapareçam do vocabulário cristão. Entre elas estão conceitos como “pecado”, “graça”. Se o ser humano é vítima de “entidades”, por exemplo, que sentido faz falar de “pecado”, pois ele não é senhor de seus atos; eles são decorrências da atuação de algum “espírito” que dele se apossou. Se no neoliberalismo o que vale é a liberdade do mercado, para muitos a fé cristã também deve se submeter às leis desse mercado e vender o “produto” que oferece, a que “preço” o está colocando no “mercado” e se está satisfazendo aos “clientes”. Em decorrência, dois outros conceitos caros à fé cristã desaparecem: “graça” e “comunidade”. A desorientação é grande e profunda.

Foi pensando nessa situação que a Editora Sinodal desafiou um grupo de autores a buscar por parâmetros, por princípios inabdicáveis da fé cristã. Eles o fizeram recorrendo ao reformador Martim Lutero. Em tempos de crise sempre é fundamental olhar para os que foram antes de nós. Lutero foi categórico no tocante aquatro princípios, aos quais antepôs o advérbio “somente”: Cristo, fé, graça e Escritura. É partindo desses princípios que os autores trazem contribuição para um debate muito necessário à fé cristã neste início de século.

Martim Lutero foi professor universitário. Sua cátedra estava dedicada ao estudo da Bíblia. No ensino, mas também em sua atividade como pregador, deu nova forma à tradição interpretativa da igreja. Seu pensamento teológico pode, por isso, também ser designado de interpretação da Escritura ou de renovação e melhoramento da interpretação dos que viveram antes dele. Melhoramento talvez seja a palavra mais indicada. Poucas vezes valeu-se da palavra “reforma”, muitas foram as vezes em que falou de “melhoramento”. Outro tanto de sua produção foi resultado de perguntas que lhe foram formuladas. Queria dar respostas a questões de seu tempo.

Desde essa perspectiva, podemos afirmar que Lutero não escreveu nem pregou para determinada denominação, mas para a igreja, por ele sempre entendida como santa, católica e apostólica, a “comunhão dos santos” do Credo Apostólico. Mil e quinhentos anos após a Páscoa, ele quis ser representante da teologia da primeira igreja. Jamais pensou estar expondo ideias e concepções particulares. Exemplo mais evidente dessa intenção está dado em seu Catecismo Menor, de 1529. Nele, nada aponta para uma denominação particular, mais tarde designada de “igreja luterana”, ou para particularismos teológicos. A formulação na qual essa intenção fica mais evidente está dada na explicação do terceiro artigo do Credo: “Assim [o Espírito Santo] chama, congrega, ilumina e santifica toda a cristandade na terra, e em Jesus Cristo a conserva na fé verdadeira e única”.

Lutero não ficou restrito ao âmbito da igreja e da teologia. Ele é uma das grandes personalidades da história universal. Em decorrência da Reforma, o cenário político europeu transformou-se profundamente. Muito representativa é sua influência sobre a história das ideias. Uma avalancha de traduções da Bíblia foi produzida em decorrência de sua tradução e influiu na formação do caráter dos povos através da consolidação de línguas nacionais, além de contribuir para o avanço considerável do sistema escolar. Lutero recebeu, por isso, lugar de destaque na história da pedagogia.

Os estudos relativos à sua pessoa e à sua obra estão presentes em todas as línguas e povos e, hoje, é quase impossível apresentar uma visão sistemática dos aspectos estudados em sua produção, que também teve caráter excepcional. Em vida, publicou mais de 450 livros. Por mais de 40 anos produziu manuscritos para suas aulas. Foram legadas cerca de 3000 de suas pregações. De suas cartas, cerca de 2600 foram preservadas. A edição crítica de suas obras, iniciada em 1883, comporta mais de cem volumes. O presente livro busca trazer um retrato concentrado de seu pensamento, entendido pelos autores como representativo para o todo do ensino cristão. Para tanto, são necessárias algumas reflexões.

Questão-chave para a compreensão da fé cristã é o conceito “revelação”. Como ficamos sabendo de Deus? Em 1518, Lutero afirmou que quem procura entender Deus a partir das coisas criadas, da criação, não o entende corretamente. Só consegue entender Deus quem o compreende a partir de seu rosto voltado visivelmente para o mundo, no sofrimento e na cruz. A nós humanos sempre parece mais fácil entender Deus a partir da criação, imponente. Aqui, o lado oculto de Deus, seu poder, sua sabedoria, sua justiça, sua bondade se tornam claramente visíveis. Pelo menos é o que pensa o ser humano quando estuda as leis da natureza ou a própria história: sempre de novo se depara com Deus.

Lutero não nega de todo essa possibilidade. De fato, o ser humano deveria poder reconhecer Deus quando observa suas obras. Contudo, Lutero vai acompanhar o apóstolo Paulo quando esse re-flete sobre a situação dos gentios, dependentes de uma revelação natural: “Tendo-se por sábios, tornaram-se loucos” (Romanos 1.22). A tentativa de conhecer Deus a partir da criação mostra-se enganosa. Quem a segue engana-se a si mesmo. Lutero designa-a de “teologia da glória”; ela não corresponde à intenção de Deus. Quem então corresponde à intenção de Deus? Aquele que reconhece o Deus visível e voltado para o mundo, assim como se torna perceptível sob sofrimento e cruz. Essa afirmação nega a anterior e permite que se verifique o que ensina a fé cristã a partir da revelação de Deus em Jesus Cristo. Deus quer ser reconhecido no sofrimento e na cruz de Jesus.

Sofrimento e cruz de Jesus põem fim a toda a especulação acerca de Deus. Não devemos especular acerca dos mistérios de Deus,pensa Lutero. Eles são impenetráveis. Deus não se dá a conhecer através de seus mistérios, mas de maneira visível. Quando Deus se revela, não nos possibilita grandes especulações, mas leva-nos a toda a profundidade da miséria humana. Como Deus mostrou seu rosto na profundidade da miséria humana, temos condições de falar a seu respeito. Deus se revelou em Jesus Cristo, em sua vida, paixão, morte e ressurreição; por isso podemos falar a seu respeito. Por isso sabemos onde encontrá-lo.

Na cruz, percebemos a humanidade de Deus, sua fraqueza, sua loucura. Assim ele quer ser encontrado. Ela é o que Deus revelou aos seres humanos a seu respeito. Com isso ele não quis negar que seja possível um conhecimento de Deus a partir da natureza, da criação. No entanto, quando tomamos esse ponto de partida, ainda não estamos falando daquele Deus do qual fala a fé cristã: o Deus presente em Jesus Cristo. Quem quer deduzir Deus da criação confia em si mesmo, em sua intuição e perspicácia e não deposita sua confiança em Deus. Ele próprio estabelece o critério do conhecimento de Deus ao invés de aceitar o critério por ele estabelecido: a cruz. Foi decisão livre e soberana de Deus querer ser reconhecido a partir do sofrimento, querer sabedoria que brota do sofrimento visível. Deus quer que o adoremos como aquele que está oculto no sofrimento. Para isso baseou-se em 1 Coríntios 1.21: Pois Deus, na sua sabedoria, não deixou que os seres humanos o conhecessem por meio da sabedoria deles. Pelo contrário, resolveu salvar aqueles que creem e fez isso por meio da mensagem que anunciamos, a qual é chamada de “louca”. Conhecimento autêntico de Deus só ocorre quando Deus dá ao que crê aquilo que lhe quer mostrar, quando permite que se cumpra o primeiro mandamento, deixando Deus ser Deus, assim como ele o quer. Daí resultam as quatro afirmações categóricas de Lutero em relação
a Cristo, à fé, à graça e à Escritura.

É sobre essas quatro afirmações categóricas de Lutero que fala o presente livro, no qual são apresentados quatro princípios para a vida cristã: Cristo, fé, graça e Escritura Sagrada.
Pastor Dr. Martin Norberto Dreher, na apresentação do livro Somente Deus – Quatro princípios para a vida, que escreve em conjunto com os pastores Dr. Ricardo W. Rieth e Dr. Wilhelm Wachholz, Editora Sinodal
 


Âmbito: IECLB
Natureza do Texto: Artigo
ID: 20241
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À casa de Deus não pertence nada mais que a presença de Deus com a sua Palavra.
Martim Lutero
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