Lucas 17.11-19 - Uma reflexão ecumênica

Subsídios elaborados pelo Seminário Bilateral Misto Católico Romano-Evangélico Luterano

09/12/1998

LUCAS 17.11-19

Uma reflexão ecumênica 

Gottfried Brakemeier 

Jesus, Mestre, compadece-te de nós! (v. 13) 

Um grupo ecumênico se dirige a Jesus. Pois entre aqueles dez leprosos, dos quais o texto fala, havia pelo menos um samaritano, este que depois volta a Jesus. Mas talvez houvesse mais. Judeus e samaritanos, na época, não se davam. Eram inimigos mortais — assim como hoje o são judeus e palestinos ou protestantes e católicos na Irlanda do Norte. Havia uma barreira de ódio entre eles, levantada por experiências históricas traumatizantes, por assassinatos, chacinas, briga por privilégios e interesses políticos. Isso, embora tivessem muito em comum, não por último o Pentateuco, ou seja, uma parte da Sagrada Escritura. Acreditavam no mesmo Deus, obedeciam basicamente às mesmas leis, representavam duas variantes do mesmo povo da Aliança. Mas viviam em guerra uns com os outros. 

Foi a doença que forçou a paz. Leproso não é gente. Leproso não é judeu, não é samaritano, é coisa à margem da sociedade. Deve ficar longe dos sãos. A miséria joga as pessoas no abandono, exclui da comunidade, força, por isso, o ecumenismo entre os atingidos. Isso já sempre foi assim. Em nosso País, o ecumenismo era mais fácil na época da ditadura, quando a violação dos direitos humanos atingia em cheio também os cristãos e as Igrejas. Ele continua sendo mais fácil hoje entre os excluídos da sociedade, entre OS sem-terra, os desempregados, os empobrecidos. Sim, até me pergunto se a tão falada mobilidade religiosa, a troca de uma Igreja por outra, se ela não é uma nova forma de ecumenismo que se instala à parte das instituições eclesiásticas, motivada pelo desamparo social e o desespero de quem grita por socorro. Não tenho resposta, mas levanto a pergunta. De qualquer maneira, o desespero é um forte promotor de unidade, problemático, sim, mas muito real. Será que o ecumenismo, para avançar, necessita da miséria, do sofrimento, da ameaça comum às pessoas e às instituições? Precisamos da lepra para produzir comunhão?

Os dez leprosos se dirigem a Jesus, um judeu. Todos, também os samaritanos naquele grupo, tentam conseguir salvação por ele. Jesus, Mestre, compadece-te de nós! Também este grito é ecumênico. Não tem outro. O anseio dos leprosos é um só: gritam por misericórdia, por cura. Todas as necessidades básicas do ser humano são ecumênicas. As pessoas precisam do pão de cada dia, do perdão de sua culpa, da libertação do mal. Diferenças confessionais aí já não mais se aplicam, nem mesmo diferenças religiosas. Por isso é universal também o pai-nosso. Existem versões diferentes, traduções diferentes, mas o conteúdo tem a mesma relevância para todo o ser humano. Jesus, Mestre, tem compaixão de nós! 

Nesse clamor se condensa toda uma antropologia, a saber: a consciência de todos e todas dependermos de compaixão. O ser humano pode ser muita coisa. Pode ser definido como animal racional, como homo sapiens, como homo faber, como ser social e assim por diante. Tudo muito certo. Mas não seja esquecido que uma de suas necessidades fundamentais é a misericórdia, o amor, o socorro que o arranca de suas fraquezas e de seus cativeiros. Por isso mesmo também a confissão dos pecados, se autêntica, é sempre ecumênica. Sem ela, o ecumenismo ficaria a meio caminho. O ato penitencial faz parte de nossa oração. Senhor, Mestre, compadece-te de nós! É o que nos une através das denominações. 

E também a resposta a essa prece é ecumênica. Jesus, na oportunidade, não fez distinção entre samaritanos e judeus. Sua graça não se condiciona a confessionalidades, nacionalidades, gêneros ou a pressupostos de qualquer outra espécie. É graça realmente gratuita. Ela se particulariza, sim. E isso conforme a necessidade. Doença necessita de cura, fome de pão, culpa de perdão. Mas ela não coloca condições a serem previamente cumpridas. Misericórdia é assim. Será sempre igual, independentemente da pergunta se é praticada por pessoa católica ou luterana, metodista, ou mesmo muçulmana ou hindu. E isso vale de modo especial para a compaixão de Deus, para o seu amor, para o Evangelho. Destina-se à criatura em geral, carente, fraca, obstinada — e, todavia amada. Por isso Jesus cura todo o grupo dos leprosos, sem excluir ninguém. Nós confessamos o amor ecumênico de Deus e somos, por isso, uma só Igreja em todo o mundo. 

Somente o final da história dos dez leprosos não é ecumênico. Um só volta glorificando a Deus e agradecendo a Jesus. Os outros nove vão para casa e com isso submergem novamente, como pessoas curadas que são, nos velhos conflitos. Agora estão divididos de novo: os judeus vão para o seu mundo, os samaritanos para o deles. Eu bem poderia imaginar outro desfecho desse episódio. Que tal se esse grupo tivesse permanecido unido, comungando o louvor a Deus e mantendo a solidariedade de antes? Eles teriam representado algo novo na sociedade de então: uma comunidade ecumênica, solidária na hora do sofrimento e também solidária na hora da cura, da volta à normalidade. Infelizmente isso não aconteceu. O grupo se desintegra no momento do cumprimento de seus anseios. Será que a normalidade das condições de vida é hostil ao projeto ecumênico? 

Nós somos chamados a dar um outro final a essa história, ou seja, concretizar uma alternativa. Nós não somos iguais àqueles dez leprosos. Evidentemente não. Mas, enquanto oramos em conjunto o pai-nosso, declaramos a nossa dependência comum de Deus. A oração que Jesus nos ensinou formula magistralmente a condição humana como tal: o ser humano é dependente do que recebe. Não pode viver sem as dádivas de Deus. As preces do pai-nosso formulam os elementos básicos de uma antropologia ecumênica. Estes elementos se resumem no clamor, dizendo: Senhor, compadece-te de nós! Eu repito: nós não somos iguais aos dez leprosos. Mas também nós experimentamos graça em nossas vidas. Negá-lo significa ser cego frente à realidade. Significa ignorar a mensagem do Evangelho. Deus ouviu o nosso clamor. Somos testemunhas de suas maravilhas. Tudo isso nos une. 

Se, porém, assim é, não deveríamos ser solidários também no louvor a Deus, na formulação da nossa doutrina, na celebração dos nossos cultos, na prática da diaconia? Por que estamos impedidos de comungar juntos na mesa do Senhor? Não vejo nenhuma necessidade de sepultar nossas peculiaridades confessionais para darmos o testemunho da unidade. Não se trata de uniformizar. Já no tempo do Novo Testamento, judaico-cristãos e helenístico-cristãos expressavam sua fé de modo distinto. Havia discussão entre eles sobre questões doutrinais, sim. Pois nem tudo é compatível com o Evangelho. Mas, por amor de Deus, aprendamos a cooperar, a conviver, a sermos solidários não só na hora do aperto. Vamos colocar um sinal de novidade neste mundo, de reconciliação, de inclusividade evangélica em tempos de tanto apartheid, seja ele social, cultural ou religioso. 

Para tanto, precisamos de um novo espírito, do espírito de Cristo, ao qual rogamos queira socorrer-nos em nossas fraquezas. O reino de Deus desconhece atributos confessionais. Não existe um reino de Deus católico e outro luterano. E mesmo que não exista nenhum imperativo de renunciar às particularidades confessionais, desde que compatíveis com o Evangelho, coloquemo-las a serviço do reino ecumênico de Deus como carismas, com os quais somos chamados a trabalhar. O fim trágico dessa história dos dez leprosos não deveria mais uma vez repetir-se. Deveria ser estímulo para a construção de comunhão entre os cristãos, as pessoas e as instituições. É por isso que oramos. Amém.

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Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 11 / Versículo Final: 19
Título da publicação: Hospitalidade Eucarística / Editora: EDIPUCRS / Ano: 2000
Natureza do Texto: Artigo
ID: 20477
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