João 6.41-51

Auxílio Homilético

27/08/2006

Prédica: João 6.41-51
Leituras: 1 Reis 19.4-8 e Efésios 4.30-5.2
Autor: Sidnei Vilmar Noé
Data Litúrgica: 12º.Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/08/2006
Proclamar Libertação - Volume: XXXI

1. Introdução: A vivência inconsciente do texto

Ao ler o texto, espontaneamente descortinou-se ante meus olhos “A Última Ceia”1 de Leonardo da Vinci (1498), um quadro presente em quase todos os lares, geralmente na sala, onde se encontra a mesa para as refeições. Seria importante que o pastor e a pastora2 conhecessem as suas ovelhas, a ponto de ouvir delas pessoalmente o porquê desse quadro estar em suas casas.

Talvez a lembrança me tenha sido suscitada porque ainda estivessem vivas em minha memória as lembranças do livro de D. Brown ou porque na Páscoa me ocorreu que seu mais verdadeiro e autêntico símbolo deveria ser a comunhão em torno da mesa. Acaso essa imagem tão conhecida não resu- me todo o evento pascal? Não é isso o que Jesus pregou e anunciou a todos os quadrantes: que Deus nos quer reunir todos em torno da mesa e nos servir com fartura já agora e com toda a certeza no fim dos tempos.

Também um filme inundou meu ser com imagens, como que vindas do próprio céu: Amor além da Vida, com o incomparável Robin Williams. Nesse o céu é vivido como um mergulhar nas coisas mais significativas da vida. No caso, um quadro que o protagonista pendurara em sua sala, pintado por sua amada esposa, absolutamente repleto de cores muito vivas. Seu contraponto era o inferno vivido pela esposa, após cometer suicídio, justamente por perder o olhar para essas coisas mais significativas e essenciais e ficar presa a sentimentos de culpa e remorso.

Também se impôs à lembrança o bordão romano panem et circenses. Nesse contexto, como expressão da vida dirigida pela ilusão de falsas crenças e promessas, muito efetivamente exploradas em todas as épocas e luga- res por poderes de diferentes matizes.

Mas a mais vigorosa associação que me veio à mente não foi uma imagem, mas uma palavra vinda da boca de Frei Betto em sua saudação aos conciliares no culto de abertura do XXIV Concílio da IECLB em São Leopoldo: Os nossos templos deveriam ser padarias.

É um tanto inusitada a afirmacão, mas, se pensarmos bem, de fato é isso que a igreja necessitaria ser: um refúgio para alimentar aquele que tem fome e sede. Já aqui poderíamos antecipar uma idéia para o encontro da comunidade com seu Deus: Proporcionar a vivência concreta, olfativa e palatável do alimento com o pão da vida. Deixar que o templo exale o cheiro de pão quentinho poderia ser uma boa preparação para essa vivência humanamente divina. Toda a vivência da celebração poderia centrar-se na dádiva do pão e de seu repartir em santa comunhão.Permito-me partilhar essas vivências, pois vejo nelas o primeiro passo nessa espiral hermenêutica de aproximação ao texto, que juntos ora fazemos. Seria importante que cada um de nós, ao meditar sobre o texto, se permitisse essa licença poética para sobrevoar o vão temporal e espacial (das “garstige breite Grab” de Lessing, 1777), que nos separa do texto em questão. Assim, a palavra abre-se para acolher a nossa vida em sua verdade, por mais heterogênia e heterodoxa que essa seja em relação àquela.

2. Desdobramento: Consciente e inconsciente meditam sobre o texto

2.1 – Introdução

O quarto evangelista surpreende-nos e provoca estranhamento na sua leitura de Jesus Cristo. Certamente tem o privilégio de supor os demais e por isso também se concede a licença poética necessária para colocar sua ênfase em aspectos que muitas vezes colocam um contraponto teológico às demais leituras. Justamente por isso logra dialogar com mais profundidade com os seus ouvintes e leitores.

A sua forma de testemunhar a revelação em Jesus Cristo concentra-se na fórmula teológica: “egô eimi”! Eu sou! Na maioria das vezes, a fórmula é empregada em relação a um símbolo: pão, água, pastor, videira, luz do mundo, vida, porta. Todos os símbolos, por sua vez, estão relacionados a “Zoé”, ou seja, à vida.3 Numa segunda forma, João emprega a fórmula de modo absoluto, sem nenhuma qualificação adicional. Esse emprego aponta para uma fórmula de identificação da natureza singular e da autoridade de Jesus (cf. Jo 6.20; 18.5,6,8): nela concentra-se todo o conteúdo da fé, respectivamente, do reconhecimento de Jesus, como sendo aquele que é. Ainda ocorre o emprego imbricado em outros tipos de construções frasais predicativas (Jo 4.26; 8.18,23).

A fórmula cristológica empregada por João para sintetizar a identidade de Jesus alimenta-se de diversas fontes: Desde tradições veterotestamentárias, na autodenominação de Javé, como sendo aquele que é. Jesus Cristo é, nesse sentido, o próprio Deus que se doa e simultaneamente é a dádiva que traz vida ao mundo. Também nas narrativas do Dêutero-Isaías, bem como na literatura sapiencial. Há paralelos especialmente significativos em relação à religiosidade egípcia, onde essa forma de falar da e sobre a divindade é freqüente. Somam-se a essas a antiga fórmula oriental do envio de mensageiros: esse recebia uma mensagem e, ao entregá-la, deveria anunciar-se como “eu sou” esse ou aquele e depois retornar.

É necessário, portanto, buscar a compreensão da metáfora a partir desse horizonte mais amplo do Evangelho de João, onde a fórmula “eu sou” sintetiza a compreensão teológica da reveleção do evangelista.

2.2 – Delimitação

O texto sobre o qual ora meditamos insere-se num contexto maior, que se estende dos vv. 30 ao 51. É a assim denominada Lebensbrotrede (a narrativa sobre o pão da vida). Certamente os vv. 41-51 ecoam aquilo que está condensado no v. 35. Ainda poder-se-ia subdividir a perícope em dois complexos: vv. 41-47, cuja temática concentra-se no murmurar dos judeus, e os vv. 48-51, que retomam a imagem do pão da vida.

2.3 – Imagens do texto

O murmúrio – Como reviver o murmurar dos interlocutores? A associa- ção com o dito “santo de casa não faz milagres” é imediata. Ou seja, como pode alguém que julgamos conhecer tão bem, pois sabemos sua origem, ter uma autocompreensão tão diferente, tão divina em seu jeito de falar, sentir e viver e se dizer vindo de Deus? Beira a apostasia, isso que Jesus emana. Em outras palavras, como alguém tão humano pode se afirmar tão divino? É necesário um sinal, que confirme essa autoconsciência: um sinal que não seja deste mundo, mas que, ao mesmo tempo, manifeste-se empiricamente. E. Drewermann resume o que está em jogo da seguinte maneira: “A crise da consciência religiosa ao final do séc. XX e início do séc. XXI está sedimentada essencialmente na polarização entre uma crendice, viciada por milagres, por um lado, e em um pragamatismo ou descrença, que chega a se tornar um substituto da magia, por outro”. Já o evangelista testemunharia que “o mundo e as experiências que nele podem ser vividas precisam ser encaradas como símbolos de uma forma bem distinta de realidade. Quem alcança esse discernimento caminha com os pés secos sobre o mar: esse mundo frágil e questionável torna-se uma ponte entre o aqui/agora e o além (Diesseits und Jenseits)”.4

O pão que desce do céu – “Nem só de pão o ser humano viverá, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus” é a paráfrase de um hino conhecido do respectivo versículo bíblico. Outro hino canta: “É mais que pura massa, é feito com alegria...” Jesus Cristo é o alimento vindo do céu para saciar a fome do mundo. Ele é e quer ser simultaneamente o alimento concreto e real que sacia a fome, igualmente concreta e real, a exemplo do maná que desceu do céu em meio ao deserto, quando da fuga da terra da servidão. E também o alimento espiritual e existencial daqueles que sofrem sob a inanição resultante da falta de sentido em suas vidas. Simultaneamente, são o próprio doador e a doação.

Quem o Pai trouxer – vem a mim – A idéia expressa aqui talvez possa ser mais adequadamente traduzida por puxar. É o próprio Deus que “puxa” para si a sua grei. Assim foi com o povo de Israel e assim é, por meio de Jesus Cristo, em relação a todos nós. É o amoroso e gracioso atrair para si que faz com que os nossos olhos se abram para a nova vida, que em, através e por meio de Jesus Cristo nos é presenteada. Conseguir perceber isso é dádiva da fé, que, por sua vez, é dádiva de amor do próprio Deus. Significa já aqui e agora adentrar uma vida que não se esgota.

Ouvir e aprender – A dádiva da fé relaciona-se dialeticamente com o ensino que vem de Deus. Esse permite reconhecer que em Jesus Cristo ocorrem a atualização e a consumação das promessas do primeiro Testamento. Mas como Deus nos ensina? Sem dúvida, o texto centraliza o ouvir e aprender no e do próprio Jesus Cristo. Em outras palavras, “puxados” por Deus, aprendemos a conhecer e reconhecer a vida que não acaba, ensinada e vivida por Jesus Cristo.

Quem vem de Deus: só ele viu o Pai – Novamente temos aqui uma concentração cristológica que polemiza ou exclui outros meios de ver ou ouvir a Deus, seja a idéia gnóstica de uma experiência imediata e direta de Deus, seja a idéia judaizante de uma mediação por meio da Torá. Solus Christus poderia ser o substrato dogmático desse reiterado testemunho do evangelista.

Aquele que crê tem a vida eterna – A fé recebida graciosamente tem no ouvir, no aprender e no deixar-se ensinar por Jesus Cristo sua resposta humana. Há aqui uma certa ênfase na participação ativa e consciente, por meio da fé, no evento salvífico concentrado em Jesus Cristo. Sola fides, em seu duplo e paradoxo sentido de graça e resposta humana, pode ser entendido como o sumo dessa afirmação.

Eu sou o pão da vida: A partir dessa afirmação, o evangelista retoma o ducto dos vv. 31-35, em relação aos quais a parte intermediária representa uma espécie de excurso, parêntese ou “inclusio”5 . Ocorre um afunilamento explícito da afirmação do v. 35. Se nos versículos anteriores era explicitado quem é esse pão, a saber, Jesus Cristo, e nos seguintes, como se chega a esse pão, ou seja, por meio da fé, agora a pergunta a ser respondida é como é possível alimentar-se desse pão. Embora não haja uma alusão explícita à Eucaristia, antes imagens bem mais arcaicas como fome e sede, respectivamente pão da vida e água viva fossem evocadas, pode-se considerar que aqui já se antecipa uma ponte literária aos versículos subseqüentes (v. 52ss), onde essa conotação é desdobrada.6

Maná; Quem comer desse pão não morrerá; O pão é a minha carne – Novamente nos reportamos a E. Drewermann, que resume o sentido do epílogo com as seguintes palavras: “Tudo o que Ele queria trazer era ele próprio” (Alles, was er bringen wollte, war er selbst) 7 . Dito de outra forma: o que Jesus realmente queria era algo que acontece no presente, algo experienciável no aqui e no agora.

3. O texto e a nossa vida

Dádiva, entrega e amor: essas palavras resumem o significado das palavras do pão da vida para nós hoje.8 Somos puxados para junto dele pelo Pai, para que Ele sacie com fartura a nossa fome. A celebração é a possibilidade de saciar, enquanto indivíduos e comunidade famintos, a nossa fome de forma integral. Sola gratia assegura o nosso convite em torno da mesa. Sola scriptura, por outro lado, ensina-nos o caminho em direção ao pão da vida.

4. Idéias para a celebração

O material e o espiritual, o concreto e o abstrato, o humano e o divino podem encontrar-se de forma experienciável, se pão e palavra andarem juntos na celebração. A comunidade pode ser preparada no encontro anterior, destacando o caráter da vivência a ser ofertado na celebração em torno do texto indicado. Grupos da comunidade podem ser encarregados do preparo do templo, no sentido de transformá-lo em uma “padaria”. Recomenda-se uma celebração menos formal, por exemplo nos moldes de um ágape. Caso não seja possível, vivenciar a palavra por meio da Eucaristia. Mais idéias podem ser encontradas nos três estudos anteriores sobre o texto no Proclamar Libertação.

Notas:

1 O afresco original se encontra no Convento de Santa Maria delle Grazie em Milão.

2 Também diáconos, catequistas e missionários assumem essa função, à medida que assu- mem o ministério do cuidado da grei de Jesus Cristo.

3 Cf. R. SCHNACKENBURG, Das Johannesevangelium, p. 60.

4 E. DREWERMANN, Das Johannes Evangelium, p. 283.

5 R. SCHNACKENBURG, Das Johannesevangelium, p. 81.

6 U. WILCKENS, Das Evangelium nach Johannes, p. 105.

7 E. DREWERMANN, Das Johannes Evangelium, p. 291.

8 Uma leitura adicional recomendável são os comentários suscitados pelo texto aos colonos do Evangelho de Solentiname de Ernesto Cardenal.


Bibliografia

DREWERMANN, Eugen. Das Johannes-Evangelium. Bilder einer neuen Welt. 1. Teil. Düsseldorf:: Patmos, 2003. pp. 280-307.
SCHNACKENBURG, Rudolph. Das Johannesevangelium. II. Teil. Freibug, Basel, Wien: 1971. pp. 53-84.
SCHNELLE, Udo. Das Evangelium nach Johannes. 3. ed. Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2004. pp. 136-147.
WILCKENS U. Das Evangelium nach Johannes. Tomo 4. 17. ed. Göttingen: Vandenhoeck&Rupprecht, 1998. pp. 103-106.
 
 


Autor(a): Sidnei Vilmar Noé
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 12º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 41 / Versículo Final: 51
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2005 / Volume: 31
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 23654
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