A biblioteca de Nag Hammadi

01/12/2000

A biblioteca de Nag Hammadi

• Germano Streese •

Em dezembro de 1945, um camponês árabe, Mohammed Ali al-Samman, fez uma descoberta arqueológica que transformou radicalmente a compreensão dos estudiosos acerca do mundo do Novo Testamento. Mohammed e seu irmão estavam cavando uma cova à procura de sabakh (um tipo de solo utilizado pelos camponeses como fertilizante), nas proximidades do lugarejo de Nag Hammadi, quando encontraram uma jarra de mais ou menos um metro de altura. A jarra estava selada. Inicialmente Mohammed ficou em dúvida se deveria quebrar a jarra ou não. Seu medo vinha do temor de a jarra conter um gênio que lhes pudesse fazer mal. Depois de ponderar que a jarra pudesse esconder um tesouro, ele tomou coragem e a quebrou. Nem gênio, muito menos ouro, mas 13 livros de papiro, encadernados em couro, e várias folhas de papiro soltas. Ele enrolou os livros em sua túnica e voltou para a sua aldeia. Chegando em casa, largou o seu achado junto à pilha de palha que alimentava o forno.

Algumas semanas mais tarde, Mohammed e seus irmãos vingaram a morte de seu pai assassinando um outro camponês. A notícia corria solta de que a morte deste camponês seria vingada da mesma maneira. Temendo que as autoridades locais viessem até sua casa para investigar as acusações contra ele e encontrassem os livros, Mohammed entrou em contato com o padre de sua vila para que este guardasse alguns livros para ele. Um professor de história da vila tomou contato com os livros sob a guarda do padre e desconfiou que os mesmos pudessem ter algum valor. Tendo recebido um exemplar do padre, este professor se dirigiu até a cidade do Cairo, onde um estudioso da língua copta reconheceu o valor do texto. As autoridades egípcias foram informadas e tomaram posse do manuscrito. O livro tombo do Museu Copta do Cairo tem o registro desta aquisição: 4 de outubro de 1946.

Neste interim, a mãe de Mohammed, considerando que os textos não possuíam nenhum valor, utilizava-os como lenha para alimentar o fogo do fogão de sua casa. Alguns vizinhos adquiriram o resto dos livros por unia ninharia. Estes, por sua vez, revenderam os textos após ouvir que eles tinham algum valor. Muitos arqueólogos e pesquisadores europeus vieram até o Egito e adquiriram estes textos, revendendo-os para museus e colecionadores.

O Codex I foi contrabandeado para fora do Egito por um colecionador belga, que tentou, sem sucesso, vender o mesmo nos Estados Unidos em 1949. Em 1952, o mesmo foi adquirido pelo Instituto Jung de Zurique. Após várias ações do governo egípcio, os originais dos textos, conhecidos como a Biblioteca da Nag Hammadi, estão sob a custódia do Museu Copta do Cairo.

Qual a importância destes textos?

Os textos apresentam uma forma de pensamento teológico que existiu nos primeiros séculos de nossa era. Os textos descobertos em Nag Hammadi e outros semelhantes a eles que circulavam entre as comunidades cristãs foram denunciados como heresia pelas autoridades eclesiásticas de então. Até a descoberta de Nag Hammadi não se tinha acesso direto ao que estes grupos ou pessoas pensavam. Tinha-se somente informações parciais. Hoje os estudiosos podem ter acesso direto a estes textos, pois os textos de Nag Hammadi, além de serem disponíveis em edições fac-similes, também foram traduzidos para diversas línguas modernas (inglês, alemão, francês, e alguns textos para o português).

Talvez o texto mais famoso da biblioteca de Nag Hagmmadi seja o Evangelho de Tomé. Este texto apresenta provérbios, profecias e parábolas atribuídas a Jesus e registradas por Judas Tomé. O texto copta preservado é uma tradução do original grego e pode ser datado por volta do ano de 200. A relação do Evangelho de Tomé com o Novo Testamento é matéria de estudo de vários especialistas. É consenso hoje na pesquisa que a fonte do Evangelho de Tomé e aquelas que deram origem aos evangelhos que encontramos no Novo Testamento estão próximas umas das outras.

A influência da teologia gnóstica está claramente presente no Evangelho de Tomé apesar de não podermos designar uma escola ou seitas especificamente. A coleção de ditos são designados como as sentenças ocultas que o Jesus vivo pronunciou. É uma coleção esotérica. A chave para o seu entendimento é a interpretação dos significados secretos dos ditos. Quem conseguir isto não experimentará a morte. Para o Evangelho de Tomé a experiência religiosa básica não é somente o reconhecimento da identidade divina que cada pessoa tem dentro de si, mas o reconhecimento de onde viemos e para onde vamos. Para conseguir isto, para poder encontrar a nossa origem, o discípulo precisa se separar do mundo, ele precisa se despir da roupagem da carne e da existência corrupta para poder experimentar o novo mundo, o reino da luz, paz e da vida.

A descoberta feita por Mohammed constitui-se de uma biblioteca de escritos gnósticos. Todos os escritos oferecem algum ensinamento secreto, muitos deles se referem a textos do Antigo Testamento, outros a cartas de Paulo. Alguns incluem figuras conhecidas nos Evangelhos — Jesus e os apóstolos, por exemplo. Mas ao mesmo tempo as diferenças com o Novo Testamento são impressionantes. Vejamos algumas destas diferenças:

a) Judeus e cristãos insistem numa clara diferença entre a humanidade e seu criador. Deus é completamente diferente da sua criatura. São duas entidades distintas. Mas para os gnósticos o auto-conhecimento é o conhecimento de Deus, o humano e o divino são idênticos.

b) O Jesus vivo apresentado nos textos fala sobre ilusão e entendimento e não de pecado e arrependimento, como o Jesus do Novo Testamento. Ao invés de vir para nos salvar do pecado, ele nos chega como um guia que abre as portas para o entendimento espiritual. Nos textos gnósticos, quando o discípulo atinge o esclarecimento, ele não precisa mais de Jesus como seu senhor, mas se torna igual ao seu mestre.

c) Jesus é considerado pelo cristianismo ortodoxo como Senhor e filho de Deus de maneira bem clara. Jesus, apesar de ter-se feito homem, permaneceu distinto do resto da humanidade a qual veio salvar. O Evangelho de Tomé mostra que, no momento em que Tomé reconhece Jesus, este diz a ele que ambos receberam o seu ser da mesma fonte.

Além da importância arqueológica, os textos de Nag Hammadi também nos mostram que desde o início o cristianismo não foi monolítico, que não existia somente uma forma de viver a fé. Muitos dos ditos destes textos gnósticos não podem ser considerados como normativos, mas eles nos mostram como outras pessoas e grupos pensavam sobre a mensagem de Jesus Cristo em um tempo muito próximo daquele em que surgiram os textos que hoje fazem parte do Novo Testamento.


O autor é pastor da IECLB e bibliotecário da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS


Voltar ao índice do Anuário Evangélico - 2001
 


Autor(a): Germano Streese
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2001 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 200000000000000
Natureza do Texto: Artigo
ID: 32976
REDE DE RECURSOS
+
A intenção real de Deus é, portanto, que não permitamos venha qualquer pessoa sofrer dano e que, ao contrário, demonstremos todo o bem e o amor.
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br