Lucas 14.15-24

Auxílio Homilético

16/06/1985

Prédica: Lucas 14.15-24
Autor: Meinrad Piske
Data Litúrgica: 2º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 16/06/1985
Proclamar Libertação - Volume: X

l - O texto

Lucas 14.1-24 forma uma unidade composta de quatro episódios diferentes. Todos os episódios têm como ponto de referência comum a refeição na casa de um dos principais fariseus onde Jesus era o hóspede. O primeiro episódio relata a cura de um hidrópico no sábado (14,1-6), o segundo conta a parábola dos primeiros lugares à mesa (14.7-11), o terceiro fala da escolha de convidados (14.12-14) e o quarto e último trecho — tendo o v. 15 como introdução — é formado pela parábola da grande ceia (14.16-24). Enquanto os três primeiros episódios são relatados somente por Lucas, a perícope da grande ceia tem passagem paralela em Mt 22.1-14.

Há diferenças importantes entre as duas versões: Mateus diz que o reino dos céus é semelhante, o que falta em Lucas. Enquanto que no Evangelho de Lucas certo homem dá a grande ceia (v. 16), no Evangelho de Mateus é um rei que celebra as bodas de seu filho (Mt 22.2). Especialmente o acréscimo no Evangelho de Mateus (22.11-13), sobre o convidado que foi à festa sem as vestes nupciais, faz com que o escopo dos dois relatos seja muito diferente.

Tudo indica que a versão de Lucas é a mais antiga e que a versão de Mateus é um exemplo clássico de como a comunidade que transmite a história interpreta o seu conteúdo para a nova situação (Voigt, p. 307). Isto se torna bem claro em Mt 22.7 que fala da destruição da cidade — uma evidente alusão posterior à destruição de Jerusalém pelo exército romano no ano de 70.

Ainda a palavra final com a qual culmina todo o relato de Mateus, sobre os muitos que são chamados mas poucos escolhidos (Mt 22.14), é uma interpretação posterior com a qual a comunidade interpretou para si a parábola. Originalmente essa palavra final falta à parábola, e mesmo que em versões muito recentes ela tenha sido acrescentada, também na versão de Lucas, a parábola da grande ceia deve ser interpretada a partir de seu próprio conteúdo.

II - Considerações exegéticas

V. 15: Um dos que estavam com Jesus à mesa, na casa do fariseu onde se realizava a refeição, faz a exclamação — a partir das palavras de Jesus sobre os primeiros lugares e sobre quem deve ser convidado para o jantar ou a ceia — de que bem-aventurado será aquele quo comer o pão no Reino de Deus. Seria diletantismo psicológico inadmissível querer descobrir a causa desta exclamação: humilde expectativa pela recompensa prometida aos fiéis ou orgulhosa vaidade de quem se sabe de antemão no Reino de Deus. Para o evangelista Lucas esta exclamação é a ponte de ligação entre os vv. 14 e 16, e, com isto, entre duas perícopes.

Vv. 16 e 17: Jesus conta uma parábola e, mesmo que não cite o Reino de Deus, torna-se evidente que é do Reino que está falando, te consideramos que a parábola é uma resposta concreta à exclamação sobre q Reino de Deus. A grande ceia preparada por um homem é o conteúdo central de toda a parábola: ela é uma imagem muito difundida sobre o Reino de Deus. Muitos foram convidados, e isto corresponde à vontade do dono da casa. Aqui inicia já — de maneira muito clara e muito transparente — a história do Evangelho. Deus mesmo preparou a festa, preparou o Reino e convidou muitos para esta festa. Assim como era costume, o convite foi feito com antece¬dência. Importante: o dono da casa convida, quem age é somente ele.

III — Meditação

Esta parábola da grande ceia é tão transparente na apresentação e explicação da vida e mensagem de Jesus que se torna difícil sair da compreensão histórica deste texto. O povo de Israel recebeu o antigo convite de Deus feito por intermédio de profetas. Este convite ó agora atualizado, e na parábola o envio do servo para buscar os convidados é o acontecimento mais importante e mais central. Neste envio todos os demais são convidados. Vinde, porque está tudo preparado é a palavra do servo — e com este último aviso a história tem seu verdadeiro início. Os hóspedes estão sendo lembrados — como era praxe - de que tudo está preparado e pronto e que eles devem vir.

Vv. 18-20: A reação dos convidados parece ser chocante e, ao mesmo tempo, muito natural. Chocante e ofensiva porque todos já tinham recebido o convite geral. Todos já sabiam que a festa teria lugar e mesmo assim vêm com desculpas que dizem: comprei um campo, comprei cinco juntas de bois, casei-me. Todos estes compromissos poderiam ser adiados por algumas horas. A reação parece natural porque as desculpas são tiradas do cotidiano: quem comprou um campo necessita ir vê-lo, quem comprou cinco juntas de bois deve experimentá-las e quem acaba de casar não quer assumir compromissos sociais. A recusa do convite é ofensa e isto deve ser observado. As desculpas apresentadas não são aceitas pelo senhor que se sente ofendido, e ele reage com ira.

Vv. 21-23: A reação do dono da casa é a ira: fica irado com a ofensa dos que recusam o seu gentil convite. Não persegue os seus primeiros convidados, mas simplesmente passa a ignorá-los e dá ordens para que a sua ceia festiva que fora preparada aconteça assim mesmo. Só que agora os convidados serão outros: das ruas e becos são trazidos os pobres, aleijados, os cegos e os coxos. Com isto se torna claro e evidente que o dono da casa age em conformidade com a regra estabelecida por Jesus no v. 13, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Também se torna claro que o dono da casa não está condicionado à posição e ao valor social de seus convidados. Aqueles que inicialmente tinham perspectivas de comunhão de mesa estão agora desconvidados e os anteriormente indignos tomam seus lugares. O segundo envio do servo (v.23), que deve obrigar a todos a entrar, ainda sublinha a vontade do senhor em ter ocupados todos os lugares na sua casa. Essa sequência de pobres e doentes, e mais tarde de pessoas mais afastadas, que são convidados para a ceia, talvez nos indique que primeiro os publicanos e pecadores receberam o convite e posteriormente os pagãos.

V.24: O último versículo explica, resumindo o conteúdo todo, a consequência da ofensa e da ira do senhor: não provarão a sua ceia. Isto é, estão excluídos, assim como estão excluídos os fariseus que recusaram o Evangelho trazido por Jesus. A parábola explica por que Jesus anda com publicanos e pecadores e por que procura os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos: ele faz o serviço do servo que deve buscar os hóspedes para a grande ceia. É, acima de tudo, uma parábola que ensina e anuncia a graça de Deus.

No envio do servo realizam-se as palavras com que Jesus explicou sua missão em Lc 4.21: Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. A relação entre o convite para a ceia e o envio do servo é a mesma como a relação entre a palavra dos profetas do Antigo Testamento e a vida de Jesus Cristo. Jesus deve ser identificado com o servo que chama os convidados. O comportamento dos convidados diante da mensagem do servo (Vinde porque tudo já esta preparado), espelha o mesmo distanciamento que o povo teve em relação a Jesus: ninguém era totalmente livre para aceitar e acatar as suas palavras. Jesus explica com esta parábola o que acontece com aqueles que rejeitam o seu convite — estão excluídos da ceia — e quem são os novos convidados que devem ocupar os lugares preparados: os marginalizados da sociedade de então, os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.

Assim como o próprio Novo Testamento transmitiu as diversas perícopes interpretando-as, nós temos o dever de interpretar o conteúdo de determinado trecho bíblico atualizando-o. Com isto se torna necessário olhar com muita atenção para o texto proposto e, com a mesma atenção, para a situação em que se encontra a comunidade hoje. Assim como a parábola da grande ceia em Lc 14 tem em mente uma situação diferente daquela de Mt 22, a situação da comunidade que se congrega em culto no 2º. Domingo após Trindade difere da situação da igreja neotestamentária. Convém descobrir, à luz do texto bíblico, nossa real situação e convém ouvir o que a Palavra de Deus nos diz.

De importância fundamental é a própria ceia que o Senhor preparou e para a qual convoca os convidados. A ceia ou o banquete lio símbolos permanentes e muito conhecidos para o reino messiânico:

SI 22.26: os sofredores hão de comer e fartar-se...;

SI 23.5: preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários...;

Is 25.6: o Senhor dos Exércitos dará nesse monte a todos os povos um banquete...;

Is 65.13: assim diz o Senhor Deus: Eis que os meus servos comerão, mas vós padeceis fome...;

Mt 8.11: Muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa (e Lc 13.29) com Abraão, Isaque e Jacó....

O Senhor da casa é quem convida, e os hóspedes — tanto os primeiros convidados quanto os outros — apenas aceitam ou rejeitam a oferta para participarem desta ceia ou deste banquete, isto é, do Reino de Deus. Devemos observar que o Reino de Deus é descrito como sendo o lugar cujo acesso não pode ser comprado ou conquistado. Apenas tem acesso quem foi convidado. Por este motivo esta parábola exemplifica de maneira tão clara e de tão fácil compreensão que ao Reino de Deus a pessoa só tem acesso mediante a graça do convite. Podemos interpretar e atualizar as palavras tudo já está preparado (v. 17) no sentido de que, com o nascimento, vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo, tudo foi realizado. Agora basta que o convite seja ouvido e aceito.

Vale a pena refletir sobre a situação dos primeiros convidados que recebem o aviso de que agora devem ir, de que agora devem participar da Ceia festiva, de que esta é a hora em que se cumpriu a Escritura (Lc 4.21). Estes primeiros convidados agem com auto-segurança muito grande. Fazem de conta que a participação está garantida. O convite, uma vez recebido, é compreendido como sendo uma propriedade inalienável. Assim o entendiam os israelitas - fariseus e escribas — do tempo do Novo Testamento. Esta parece ser também a realidade em nossos dias, quando membros da Igreja se entendem como beneficiários de uma herança que ninguém lhes pode tirar. A segurança não se expressa necessariamente nos fatos de apresentarem desculpas concretas de compra de um campo, de cinco juntas de bois ou de terem casado. Mas desculpas de ocupações de ordem profissional ou social não são novidade nos dias de hoje para excusar participação na vida comunitária e no serviço eclesiástico, ou em atividades de caráter social e político. Quem pede desculpas por sua não-participacão são as pessoas que se sentem seguras e tão ocupadas.

A ira de Deus com o obstinado povo de Israel tem como consequência o milagre da graça que é a igreja dos pobres — esta afirmação do teólogo alemão Peter Brunner, escrita na década de 1950, sintetiza de forma exemplar o conteúdo da parábola. A igreja dos pobres, dos aleijados, dos coxos e dos cegos não tem dignidade alguma em si mesma, isto é, em seus membros. Os pobres, aleijados, coxos e cegos reunidos à mesa do Senhor não têm mérito ou status algum. Apenas por graça do Senhor receberam o convite e somente por piedade podem participar da festa do Reino de Deus. Esta igreja de pobres, aleijados, coxos e cegos somos nós, a igreja dos indignos e não preparados, mas mesmo assim agraciados convidados de Deus.

IV — Indicações para a prédica

Três aspectos desta parábola da grande ceia podem servir de orientação para a prédica:

1. a grande ceia do Senhor;

2. os primeiros convidados e suas desculpas;

3. a igreja dos pobres, aleijados, cegos e coxos.

1. Se Deus quer ter convidados na sua grande ceia, isso depende tão-somente da sua vontade e independente de qualquer outro fator ou consideração. É a vontade soberana de Deus que convoca pessoas, chamando-as para se fazerem presentes à mesa do Reino. Ele mesmo preparou tudo em Jesus Cristo — com seu nascimento, com sua vida e pregação, com seu sofrimento e sua morte, com sua ressurreição e ascensão — e nós apenas ouvimos o anúncio: Vinde, porque tudo já está preparado (v. 17). No Batismo, na Santa Ceia, na Palavra 6 dirigido e continua sendo dirigido este convite de Deus às pessoas.

2. Estranhamente — tanto antigamente quanto nos dias de hoje - os convidados apresentaram desculpas e não participaram. Trata-se de um convite para participar da festa do Reino e não de uma convocação para o serviço e trabalho. Mesmo assim vêm pedidos de desculpa. E os pedidos de desculpa apresentam como motivos principais o negócio (comprei um campo), o trabalho (comprei cinco juntas de bois) e compromissos de ordem social (casei). Nenhum dos convidados entende a primazia do convite de Deus. A explicação de Martim Lutero ao Primeiro Mandamento, no Catecismo Menor, descreve tal primazia com estas palavras: Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas. As desculpas humanas, muito humanas, transformaram-se em impedimento para a participação no Reino de Deus.

3. A igreja dos pobres, aleijados, cegos e coxos é formada por nós, que somos chamados, que ouvimos o anúncio e que o aceitamos. Formamos com todos os demais este segundo grupo de convidados que podem estar à mesa do Senhor. Convém dizer claramente e sublinhar que somente a graça, o amor, a misericórdia de Deus nos concedem a participação.

V — Subsídios litúrgicos

1. Confissão dos pecados: Senhor, tem piedade de nós, povo teu. Somos Indignos de comparecer diante de ti. Temos falhado em nossos propósitos e temos errado em nossos caminhos. Nada temos a oferecer e a trazer. Confiamos no teu amor e pedimos: acolhe-nos em tua graça. Tem piedade de nós. Senhor!

2. Anúncio da graça: Não temas, diz o Senhor, porque eu te remi, chamei-te pelo teu nome, tu és meu!

3. Oração de coleta: Senhor, em teu nome nós nos reunimos como igreja para dar glória e honra a ti, para buscar tua orientação e nos assegurar de tua bondade. Sê agora conosco, ilumina-nos, agracia-nos, corrige-nos e abençoa-nos em tua santa Palavra. Em nome de Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor e Salvador, que contigo e como o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém.

4. Assuntos para a oração final: humanidade, com seus problemas e angústias; cristandade dividida no mundo; nossa Igreja, sua direção, sua missão; nossa comunidade, seu trabalho, seus obreiros; o anúncio do Evangelho no mundo; que todos sabiam reconhecer o chamado de Deus; que reconheçamos a graça que nos convoca.

VI — Bibliografia

- BORN, W. Meditação sobre Lucas 14.15-24. Deutsches Pfarrerblatt, Neustadt/Weinstrasse, 67(5): 148, 1967.
- BRUNNER, P. Meditação sobre Lucas 14,15-24. In: Herr, tue meine Lippen auf. v. 1.4. ed. Wuppertal, 1959.
- BULTMANN, R. Die Geschichte der synoptischen Tradition. 5. ed. Göttingen, 1961.
- HARRINGTON, W. J. The gospel according to St.- Luke. New York, 1967.


Autor(a): Meinrad Piske
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 14 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 24
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1984 / Volume: 10
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14437
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