Do Banat a Curitiba - uma fuga

01/12/2013

Para nós uma das consequências mais dolorosas da Segunda Guerra Mundial foi a perda de nossa pátria e o desmantelamento de nossa aldeia.

Por mais de 150 anos os nossos antepas- sados viveram ali suas alegrias e tristezas. O relacionamento entre as famílias era multiforme. Além dos laços de pa- rentesco, havia as ligações de camarada- gem provenientes do tempo da escola e da juventude, do serviço militar e até de guerras, sem esquecer a participação na Igreja (luterana) e em associações e clubes.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, tudo isto foi praticamente destruído. Não quero acusar ninguém. Mas os moradores de “LIEBLING” (= Predileta) – assim se chama a nossa aldeia até hoje – agora estão espalhados por todo o mundo.

A região do Banat, onde morávamos, pertencia à Áustria. Em virtude das muitas guerras turcas, ela ficara desolada. Por proposta de um príncipe, de nome Eugen, as cortes de Viena decidiram recolonizar a região do Banat. Durante o reinado do imperador Carlos VI e da imperatriz Maria Theresia (1740 – 1780) somente famílias católicas tiveram permissão de entrar como imigrantes no Banat.

Franz Joseph, ainda como príncipe herdeiro, empreendeu uma viagem de reconhecimento à região. No ano de 1780 subiu ao trono do império austríaco como Joseph II. Já dois anos depois editou o seu “Ansiedlungspatent” (= Decreto sobre Colonização no Banat), que assegurava total liberdade de consciência e religião para os imigrantes da nova colônia. Só então também os de confissão evangélica luterana puderam se estabelecer ali. Assim veio a surgir, em 1786, a nossa colônia LIEBLING. Aliás, o seu nome foi definido pela própria esposa de imperador Joseph II, Elisabeth, mais conhecida pelo seu apelido “Sissi”. Ela afir- mou: “Os evangélicos são meus prediletos, por isso a colônia deve chamar-se ‘LIEBLING’ (= Predileta).” Este nome permanece até hoje, mesmo a região hoje não mais pertencendo à Áustria.

Os meus antepassados migraram em 1800 de Nordheim, perto de Heilbronn/ Alemanha para lá. Eles transformaram Liebling em uma colônia florescente. Tanto é que foi apelidada de “Paraíso”. Depois da Primeira Guerra Mundial (1914-18) o Banat foi incorporado à Romênia.

No início da Segunda Guerra Mundial a Romênia era aliada da Alemanha. Os nossos jovens e homens, alistados no exército, foram convocados a lutar como soldados ao lado da Alemanha. Mas em agosto de 1944 a Romênia rompeu a aliança com a Alemanha, unindo-se aos “Aliados”. Em consequência, permitiu livre passagem para o exército russo.

À época o exército alemão ocupava o Banat. Mas em setembro de 1944 as tropas alemãs foram obrigadas a bater em retirada.

Antes, porém, o comando alemão colocou os descendentes de alemães diante da decisão: Ficar ou fugir (para a Alemanha). Então tivemos que tomar esta difícil decisão: Fugir diante das tropas do exército russo, abandonando tudo, ou ficar, submetendo-nos ao imprevisível dos soldados comunistas. Tudo foi muito rápido, sem tempo para pensar. Mas ninguém foi obrigado a se decidir por uma ou outra forma.

As primeiras carroças, carregadas com poucos pertences, deixaram a nossa aldeia às 14:00 horas e as últimas às 16:00 horas. Um levantamento posterior mostrou que 2.158 pessoas em 447 carroças com 798 cavalos deixaram LIEBLING, a sua pátria. Nossa colônia à época tinha cerca de 4.000 habitantes, todos evangélicos de confissão luterana. Os que decidiram ficar (todos os nascidos entre 1908 a 1927) foram logo depois deportados para a Rússia. Consta que os que sobreviveram ao exílio forçado, só puderam voltar seis anos mais tarde.

Nossa caravana (chamada de “Treck”) atravessou muitas localidades do Banat. Ao chegarmos à Sérvia, fizemos uma parada para descansar. Mas não por muito tempo. Logo fomos pressionados pelos “partisanos” (= guerrilheiros = organização paramilitar, adversários dos alemães). Por enquanto o exército alemão ainda nos protegia e ajudava.

Quando chegamos à fronteira, um enorme rio (de nome Theis) nos barrou. Tivemos que atravessar sobre uma ponte flutuante com os nossos cavalos assustados. Mas tudo deu certo. Adentramos a Hungria. Lá fomos bem recebidos pela população. Muitos deles falavam alemão, pois a Hungria por muito tempo fez parte do império austro-húngaro. Muitas vezes nos ofereciam comida.

Já era outubro (outono). Não poucas vezes chovia durante dias. Muitas pessoas de nossa caravana andavam a pé ao lado das carroças. Também eu tive que andar a pé, pois na carroça estavam meus pais e minha avó, além de duas vizinhas com crianças de dois e quatro anos. Não foi fácil, pois as crianças precisavam de leite e de vez em quando uma comida quente. Minha mãe tinha levado bastante bacon e linguiça. Mas para as crianças faltava o alimento adequado.

Por esse tempo também a Hungria passou para o lado dos “Aliados” e os nossos problemas aumentaram. Começou a ficar cada vez mais difícil conseguir comida para tanta gente e trato para os animais. Enquanto dava, os de fala alemã e os soldados do exército alemão nos ajudavam e protegiam. Chegou o dia em que todos nós tivemos que prosseguir em nossa fuga.

Quase cinco semanas mais tarde alcançamos a fronteira e entramos na região da Steiermark na Áustria. Fomos conduzidos logo até a cidade maior (“Kreisstadt”) de Fürstenfeld, sendo distribuídos, em seguida, às diferentes vilas. Em nossa peregrinação havíamos vencido mais de 1.000 km. Meu pai passou a trabalhar com cavalos para conseguir o trato para os nossos cavalos. Minha mãe e eu assumimos o serviço de cavar trincheiras. Mas aí começou a desgraça: Quase que diariamente sofremos ataques de aviões que em voos rasantes atiravam nas pessoas que se jogavam ao chão. Onde possível, corríamos para o mato para nos esconder. Houve muitos feridos e, num só dia, oito mortos. Junto com minha tia a mamãe e eu tínhamos que andar 7 km à pé até ao trabalho, com temperaturas de 32 °C abaixo de zero.

Passou o inverno e, quando chegou a primavera, esperávamos poder voltar para casa. Mas em março de 1945 o curso da guerra piorou para os alemães. Os russos chegaram à Hungria de modo que no dia 31 de março tivemos que pôr-nos em fuga outra vez. Só que agora era bem mais difícil do que na fuga anterior. Agora foi preciso passar pelas as altas montanhas dos Alpes. Coitados dos nossos cavalos! A estrada abarrotada de soldados e povo em fuga, sofrendo constantes ataques de aviões, em voos rasantes. As aeronaves surgiam de repente por trás das montanhas e a gente mal tinha tempo de se jogar nas valetas ao lado da estrada, em busca de abrigo. Cada ataque deixava mortos e feridos. Os cavalos também eram atingidos.

Um grande problema que se colocava era arranjar alimentação para os animais. As pessoas tinham recebido – que formidável organização mesmo em tempo de guerra! – fichas de alimentação. Mas em cotas tão pequenas que “era pouco para sobreviver, mas demais para morrer” como se dizia: 500 gramas de pão e 100 gramas de carne por semana para cada pessoa! Mas, comprar mais, onde? Tudo estava destruído! Depois de cinco semanas os diferentes grupos alcançaram o distrito de Braunau. Conseguir hospedagem foi extremamente difícil, pois o distrito inteiro já se encontrava superlotado de refugiados. Mas aos poucos tudo foi organizado.

No dia 3 de maio as tropas americanas ocuparam o distrito de Braunau. No dia 8 de maio de 1945 os alemães capitula- ram e a guerra acabou! Finalmente aca- bou!

E agora? O que fazer? Mostrou-se que era impossível voltar para a pátria (= Banat). Mais uma vez começaram as despedidas. Uma parte dos refugiados foi encaminhada para emigração para os Estados Unidos, outra para o Canadá, num processo sofrido de seleção e organização.

Seis famílias foram designadas para o Brasil, entre as quais, nós... Para cá viemos, primeiro para o interior do Estado do Paraná, à nova colônia de Entre-Rios (Guarapuava) e mais tarde para Curitiba. Foram tempos penosos de adaptação e de trabalho duro. Aqui encontramos uma nova pátria. E eu tenho que confessar: Em tudo que sofremos o nosso Deus nunca nos abandonou. Ele sempre ouviu nossas preces, embora nem sempre as atendesse de imediato.

Da cinza de nossos antepassados viemos, e retornaremos à cinza. Mas queremos deixar um rastro de nossa vida aqui na terra e superar a morte.


Artigo redigido de próprio punho – em alemão – pela autora de 88 anos, membro da Comunidade Melanchton, Boqueirão – Curitiba/PR. Tradução: P em. Heinz Ehlert


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Autor(a): Barbara Geiring d.f. Ohlhausen
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2014 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2013
Natureza do Texto: Artigo
ID: 34388
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