Justiça de gênero

17/10/2013

Justiça de gênero

Pa. Dra. Elaine Neuenfeldt1

Gênero é um tema transversal de análise nas intervenções sociais que ajuda a entender porque diferenças se tornam desigualdades. A transversalidade de gênero é instrumental de análise que tem como fim último a movimentação para que as desigualdades não sejam naturalizadas e perpetuadas, mas que relações baseadas na equidade e justiça sejam experimentadas.

Em perspectiva teológica, o conceito de justiça de gênero abraça as diferentes experiências que buscam a equidade, igualdade ou equiparação entre homens e mulheres.

Justiça de gênero é a proteção e a promoção da dignidade e o florescimento de todo ser humano com atenção a sistemas ambíguos e excludentes que, por um lado, dão privilégio a determinados grupos ou pessoas e que, por outro, excluem e oprimem outros; privilégio e opressão que são baseados em identidades culturais construídas e em expectativas de ser homem ou mulher, tanto em níveis estruturais como nas relações interpessoais.2

No âmbito da fé, o ser humano é moldado como imagem de Deus e foi criado para experimentar a comunhão inclusiva, a justiça e o amor entre si e com toda a criação. Portanto, não experimentar essa comunhão entre iguais e viver na desigualdade é não responder ao chamado ou mandato de ser imagem e semelhança de Deus. A hierarquização, o poder centralizado e androcêntrico, patriarcal, produtor de opressão e de desigualdades são a quebra da imagem e semelhança.

Nessa mesma perspectiva, proclamar o silêncio e a subordinação das mulheres, baseado numa interpretação da palavra de Deus, é uma versão unilateral e excludente. Portanto, não é uma palavra de justiça, pelo contrário, é colocar a inequidade no nível do sagrado.

A igreja, ao continuar nos moldes de uma instituição marcadamente hierárquica, masculina, tende a perpetuar a desigualdade, gerando injustiças. A rigidez de modelos culturais determina papéis de gênero para mulheres e homens, que limitam o acesso ao poder e as posiciona em lugares desprivilegiados socialmente, especialmente fora dos espaços de liderança e de tomadas de decisões. Este desprivilegio é igualmente percebido nos campos sociais, políticos e econômicos.

Uma imagem que ajuda a entender essa noção de justiça nos lugares e posições que ocupam homens e mulheres nas redes de relações é a mesa. Sentar-se à mesa, servir à mesa, mesa posta, partilha, são algumas imagens que evocam esse simbolismo cristão em torno da eucaristia.

Usando o referencial da justiça de gênero, perguntar-se-ia, criticamente, em relação a esta imagem: pelo lugar que mulheres ocupam nesta mesa, pelo formato da mesa e acessibilidade ao que está posto sobre ela, se a mesa é justa, se a mesa é aberta, se o pão disposto serve para o acúmulo e a alimentação de umas poucas pessoas ou se é partilhado, posto em comum.

A imagem da mesa faz uma conexão entre partilhar o pão e a comida e partilhar ou acumular o poder. Partilhar ou acumular pão, comida é um definidor de relações sociais. A palavra com-partilhar tem em sua raiz latina essa noção de companhia - com-pão. Tornamo-nos pessoas aliadas e parceiras com quem partilhamos o pão, com quem sentamos à mesa, com quem entrelaçamos relações, sejam elas decididas ou impostas.

A exclusão da mesa, como espaço simbólico do poder partilhado, para as mulheres, tem como consequência a restrição do exercício de autonomia. Mulheres não são consideradas sujeitos de direitos, autônomas, mas recebem direitos pela função social que ocupam, especialmente no exercício da maternidade. Mulheres são consideradas, enquanto mantenedoras dos espaços familiares, mães e esposas. Lugar paradoxal, que as confere certo tipo de poder, mas que ao mesmo tempo é, muitas vezes, espaço de violência e limitação.

Esta confusão entre a mulher como sujeito autônomo de direito em si e seus papéis como mãe e cuidadora na família ou como esposa, irmã, viúva, grávida, tem consequência direta no tipo de políticas públicas ou organizacionais, ou nos projetos de desenvolvimento que serão implementados. Estes dificilmente tocarão direitos individuais de mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, mas serão desenhados para os papéis de maternidade, de cuidado na família, de nutridora nos grupo sociais, enquadrando-as em espaços e imagens bem delineados dentro de estruturas patriarcais, perpetuando a exclusão e a subordinação.

Por isso, a justiça de gênero é a busca da cidadania plena de mulheres, como sujeitos de direitos, autônomas, não só no âmbito político, social, econômico, mas também nos espaços eclesiais, religiosos, teológicos.

A cartografia desenhada pelas relações justas entre os gêneros é plural e é diversa. Afirma a biodiversidade como valor fundamental na construção do conhecimento que permeia as relações sociais.

A justiça de gênero é o principal foco no processo de transversalizar e implementar a igualdade de gênero. Esse é um instrumental teológico que desvela importantes desafios no contexto das igrejas, além de permitir que os mecanismos e o acesso ou a exclusão dos espaços de poder, manifestas em estruturas hierárquicas e centralizadas, sejam problematizados a partir de uma perspectiva bíblica-teológica.3

É importante reforçar que o tema da justiça de gênero não seja entendido como um “assunto de mulheres”, mas que seja uma questão central de reflexão e debate nas igrejas, de concepção de e do que define ser igreja, enfim, um conceito eclesiológico.

Outro aspecto importante, mais do que refletir e debater, é criar plataformas que permitam ações concretas, com planos de implementação definidos. A justiça de gênero deve desembocar em políticas de gênero que são as diretrizes institucionais e os marcos regulatórios de uma organização que definem a intencionalidade orgânica de praticar a inclusão de homens e mulheres de forma igualitária e justa. Em termos teológicos e pastorais, a justiça de gênero vai desembocar em ações concretas no âmbito das igrejas que mostram a perspectiva eclesiológica de inclusão e de seguimento ao Evangelho.

Proposta de estudo4

Após a devida introdução ao assunto feita através da leitura, tempestade de ideias e explicação do texto, sugere-se dividir o grupo em grupos menores para, a partir do texto lido, refletirem sobre as seguintes questões:

1. Por que mulheres parecem sentir-se mais confortáveis no espaço da cozinha e nos bastidores das reuniões do que ao redor da mesa onde as decisões importantes são tomadas?

2. Por que os homens são a maioria nas funções de liderança na estrutura da Igreja?

3. Por que mulheres não querem ou não se sentem motivadas a concorrer a cargos de liderança?

4. Por que existe um grande número de Paróquias que nunca elegeu uma ministra ordenada?

5. Por que mulheres e meninas guardam silêncio frente a abusos sexuais, morais ou profissionais, dentro ou fora do âmbito da Igreja?

6. Como são as relações baseadas na equidade e na justiça?

Notas:

1. Dra. Elaine Neuenfeldt:doutorado em Teologia,bacharel em Teologia. Pastora. Secretaria de Mulheres na Igreja e na Sociedade da Federação Luterana Mundial, em Genebra, Suíça.

2. Baseado nas reflexões feitas no processo de elaboração de uma política de gênero da Federação Luterana Mundial.

3. Mais sobre gênero e poder, veja o documento: Gender and Power document: “It will not be so among you! A faith reflection on Gender and Power”: (dispoível também em espanhol) http://www.lutheranworld.

4. Proposta elaborada pela Pa. Lusmarina Campos Garcia: bacharel em Teologia, Direito e Ciências Sociais. Pastora. Rio de Janeiro/RJ.

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Autor(a): Elaine Neuenfeldt
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Estudos de Gênero / Ano: 2013
Natureza do Texto: Artigo
ID: 25311
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