Lalau no céu

01/12/2000

Lalau no céu

• Oneide Bobsin •

O noticiário da meia-noite na TV pode ter sido a causa de um sonho que me embalou numa noite de inverno. Acordei não sabendo onde estava, pois os tempos e os espaços eram outros, como se a vida tivesse descolado de meu corpo e voado para o céu da minha infância, conforme descrito, certa vez, pela professora de culto infantil.

Tentarei reconstruir o que se passou naquele sonho. Lembro-me de que entre as muitas pessoas que estavam no céu da minha infância encontrava-se Lalau, o juiz que desviou uma grande quantia de dinheiro dos cofres públicos. Eu estava perplexo! Como nosso Senhor deixou este homem injusto vir parar aqui, num lugar feito para gente certinha?

Ele estava cercado de todos os seus cúmplices; logo, gente que já teve muita influência. Agora, nesta nova realidade, era uma pessoa sem poder de influência. Fiquei imaginando: Será que Lalau e seus amigos haviam assaltado o céu ou subornado a guarda celeste? Garantiram-me que não, pois com nosso Senhor não tem negociata. Nada se pode oferecer a ele. Soube, porém, que eles puderam entrar como tantos outros, com a restrição incontestável de que seus bens, ou males, ficassem fora com o FH, o Filho do Homem. Em sua grande bondade, FH assumiu todas as falcatruas e roubos de Lalau e seus amigos, como se ele fosse o maior pecador do mundo.

Como no Reino dos céus não entram bens materiais que traça e ferrugem corroem, o FH distribuiu todos os bens de Lalau e seus amigos entre as pessoas mais necessitadas. Com este dinheiro foram construídas casas populares e escolas, pois o que é público ao público deveria voltar. Mas não só povo se beneficiou com a decisão do FH. Também os netos e bisnetos de Lalau deixaram de sofrer gozação dos amigos na escola. Pois, eram estigmatizados por causa da fama do finado avô.

Quando acordei do sonho, fiquei feliz e decepcionado. Feliz porque não estava no céu de minha infância. Decepcionado porque lembrei que o noticiário havia comunicado a fuga do Lalau. Ele não estava no paraíso celeste. Mas, com certeza, estava se refestelando com o dinheiro do povo num paraíso fiscal.

Mesmo reconhecendo que era um sonho, julguei importante buscar a justificativa que deixou Lalau entrar no céu. Só os mistérios misericordiosos e a onisciência divina que desvelavam tramas secretas, incomparáveis com a perspicácia dos investigadores da nossa polícia, podiam fazer tal concessão a alguém que desviou tanto dinheiro dos cofres públicos. Também fiquei pensando que o FH passou por maus bocados quando, negado e traído, se converteu no bode expiatório da humanidade.

O FH sabia que por trás de Lalau havia muita gente. E notei que o FH fora, de fato, muito justo. Noutra época, por muito menos, os políticos e o povo destituíram um presidente, mas não o esquema de corrupção. De fato, mudou alguma coisa. O esquema de agora é mais sofisticado. Responsabilizar Lalau por tudo parecia uma injustiça. Jogá-lo no mundo dos mortos, ou no inferno, como querem os que têm sede de vingança, é repetir o erro que se condena. Por não se ter guiado pelos meus pensamentos, FH evitou uma grande injustiça.

Julguei que o FH foi mais longe em sua percepção amorosa. Ele sabia que o Lalau fora indicado por seus superiores; seus superiores foram escolhidos pelo ministro. O ministro, por um homem sábio de reputação internacional, o qual, por sua vez, pela vontade da maioria do povo. Logo, deve ter raciocinado FH, o povo ou quem dá sustentação ao esquema de corrupção também tinha uma parcela de responsabilidade.

De fato, Lalau não poderia ser condenado sozinho. FH sabia que o povo devia fazer uma mudança radical, uma meia volta, como afirmou quando estava carnalmente no meio do povo tempos atrás.

Mesmo assim, justifica-se perseguir e encontrar Lalau e seus cúmplices, para sentá-los no banco dos réus. Incautos, mal-intencionados, crianças e jovens, vendo-os sob a mira da lei e da justiça, vão aprender que o país do jeitinho está mudando e que a impunidade está deixando de ser um valor nacional.

Quando Lalau e seus cúmplices forem parar na cadeia, certamente haverá alegria na terra como no céu, porque então as prisões de uma parte deste planeta tornaram-se democráticas.


O autor é pastor da IECLB e professor da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS


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Autor(a): Oneide Bobsin
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2001 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000
Natureza do Texto: Vários
Perfil do Texto: Crônica
ID: 32997
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