Lucas 12.49-53

Auxílio homilético

29/08/2004

Prédica: Lucas 12.49-53
Leituras: Salmo 82 e Hebreus 12.1-13
Autor: Nilo Christmann
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/8/2004
Proclamar Libertação - Volume: XXIX
Tema:

1. Introdução

Não lembro de já ter feito alguma pregação sobre o texto do Evangelho de Lucas. Pode ser uma coincidência, mas provavelmente trata-se de uma tendência natural de evitar textos aparentemente mais áridos. A primeira impressão que tenho ao ler essas palavras é que falam exatamente o contrário do que costumeiramente pregamos. São palavras que parecem conflitar com as linhas gerais do evangelho. O que aqui é dito por Jesus não combina muito, por exemplo, com Jo 20.19-29, onde reiteradas vezes o mesmo Jesus diz a seus discípulos: “Que a paz esteja com vocês!”

Como se não bastasse, os textos para leitura enfatizam o juízo e a disciplina. Teríamos assim, à primeira vista, todos os elementos para um culto não muito animador. Contudo, sabemos que a palavra de Deus vem a nós como graça e juízo. É no equilíbrio dessas duas ênfases que compreendemos melhor o jeito de Deus agir; é dessa forma que também entendemos melhor quem de fato somos. Com essas impressões e pressupostos nos propomos a aprofundar o texto indicado, tentando entendê-lo no seu tempo e na sua relevância para a atualidade.

2. O lugar do texto em Lucas

Lucas foi um escritor meticuloso e criterioso (Lc 1.1-4). Fato que se evidencia na estrutura e seqüência do evangelho. O texto de 12.49-53 está dentro de um bloco maior que vai de 9-51 a 19.27 e trata da ida de Jesus da Galiléia a Jerusalém. Alguns comentaristas fazem uma subdivisão desse bloco em 13.30.

Os textos de Lc 12 até 13.30 têm uma característica específica. Não todos, mas na sua maioria são perícopes que trazem relatos fortes e apontam para o fato de que ser discípulo de Jesus não comporta meios-termos. Não há espaço para vacilos e afasta-se qualquer possibilidade de “acender uma vela para Deus e outra para o diabo”. Esta tônica vai desde a falta de perdão para quem blasfemar contra o Espírito Santo (12.8s), passa pelo rico sem juízo, que é confrontado com a morte (12-13s), também pelas chicotadas ao empregado infiel (12.41s) e culmina com a porta estreita (13.22s), que se fecha, e os que ficaram do lado de fora vão chorar e ranger os dentes (v. 28). O texto proposto, 12.49-53, está nesse meio com um enunciado igualmente forte e contundente.

3. O texto

Não há muitos controvérsias em relação à tradução. Tentativas de mudança para torná-lo mais aceitável aos ouvidos não têm consistência, segundo os pesquisadores. Quer dizer, o texto é esse aí mesmo e não é um equívoco. Vamos analisá-lo por partes:

v. 49 – Jesus diz que veio para pôr fogo na terra e que gostaria que já estivesse queimando/ardendo. Obviamente trata-se de linguagem figurada. O que ela quer dizer? Ajuda, nesse sentido, compreender o sentido do fogo. Na Antigüidade, diferentemente do que em nosso tempo, o fogo era um dos elementos estreitamente relacionados à maioria das manifestações religiosas. Assim também acontece na Bíblia. O simples uso da chave bíblica revela a intensidade do uso do termo: no Antigo Testamento, 350 vezes e no Novo, 71 vezes. Em diversas passagens, o sentido é literal (assim em Êx 12.8, Mc 9.22 etc.); mas em muitos textos o fogo é símbolo relacionado à purificação, à teofania, ao julgamento divino, à graça de Deus, ao Espírito Santo etc.

Em nosso texto o mais provável é que o fogo está relacionado ao julgamento e ao juízo. O contexto maior aponta nessa direção, bem como o paralelismo com o v. 50. Neste caso, Jesus está falando da cruz. Cruz que não se reduz à crucificação em si, mas inclui a caminhada a Jerusalém e o confronto com as autoridades religiosas, com todas as suas implicações. O fogo “arde” na cruz, onde o ser humano é julgado; onde Jesus toma sobre si os pecados da humanidade; onde a justiça de Deus se revela em plenitude.

v. 50 – O batismo ao qual Jesus se refere é o próprio sofrimento que tem diante de si. É o mesmo sentido como em Mc 10.38, onde Jesus pergunta aos discípulos: “Por acaso podem beber o cálice que eu vou beber e podem ser batizados como eu vou ser batizado?” A analogia do batismo com o sofrimento é no sentido de ser submergido por uma avalanche (Sl 69.14s). O batismo que Jesus precisa receber está diante dele como uma enxurrada que ameaça submergi-lo.

O v. 50 e também o v. 49, seguindo o paralelismo, mostram que Jesus está angustiado/aflito e que, na verdade, preferiria que a hora derradeira já tivesse chegado. Esta ansiedade é para nós naturalmente ambígua. Mas ela prefigura e anuncia a angústia que Jesus manifesta ao Pai quando ora no Getsêmani: “Pai! Se queres, afasta de mim este cálice de sofrimento. Porém não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres” (Lc 22.42).

v. 51 – A expectativa na época era pela vinda do Messias, que traria a paz, conforme relato do nascimento de Jesus: “Glória a Deus nas maiores alturas do céu! E paz na terra para as pessoas a quem ele quer bem” (Lc 2.14). Jesus é enfático ao dizer que não veio trazer a paz, mas a divisão. Já dissemos na introdução que essa afirmação é estranha no conjunto daquilo que Jesus falou e na sua atitude, marcadamente inclusiva, em relação às pessoas. Aqui nitidamente não está se falando da vontade última de Deus para o mundo.

As palavras proferidas por Jesus querem, em nosso entender, chamar a atenção em pelo menos dois sentidos: o primeiro deles é ajudar na conscientização dos discípulos de que o próprio Jesus tem pela frente um caminho de sofrimento e cruz, realidade que foi tão difícil de ser compreendida quando efetivamente chegou. O segundo sentido é deixar claro que o Reino de Deus não estava simples e definitivamente instaurado pela presença de Jesus entre eles, ao menos não na forma como eles imaginavam. O plano/projeto de Deus para a humanidade teria ainda diversas etapas e implicações que não estavam presentes na perspectiva dos discípulos. Ainda que a paz entre as pessoas seja a vontade última de Deus, o tempo vivido pelos discípulos ainda seria de dificuldade, também de cruz. A adesão ao discipulado é também adesão à cruz (Lc 14.27), implica enfrentar oposição. Não por último, terá implicações na própria família (Lc 14.26), onde possivelmente nem todos pensarão e agirão da mesma forma diante do anúncio do Reino de Deus. A divisão não é o objetivo de Jesus. Ela é conseqüência da postura diferenciada das pessoas diante da proposta do Evangelho.

v. 52-53 – O modelo familiar que transparece aqui condiz com a prática comum na época, ou seja, que a nora estivesse morando com a sogra. Era a jovem (normalmente muito jovem) que deixava a casa paterna e passava a morar com a família do marido. Por isso, a expressão “sogras contra as noras, e noras contra as sogras”. Segundo a apocalíptica judaica, a divisão na família está incluída entre as “dores messiânicas” que precedem a vinda do próprio Messias. Quer dizer, a temática que, de certa forma, nos assusta no texto estava presente nos tempos de Jesus. A referência mais direta nesse sentido remonta ao tempo de Miquéias. O profeta denuncia a desobediência a Deus e anuncia o juízo dizendo: “Cada um tome cuidado até com o que diz à sua mulher. Pois hoje em dia os filhos desprezam os pais, as filhas desobedecem às mães, e as noras brigam com as sogras” (Mq 7.5b-6a).

É interessante observar que no texto de Mt 10.34-39, paralelo ao que estamos estudando, há uma maior clareza do motivo da divisão no meio familiar. Lá é dito literalmente que aqueles que amam mais os pais, mães ou filhos do que a Jesus não servem para ser seguidores/discípulos (v. 37). Sabemos que Jesus não revogou os mandamentos, o que inclui honrar pai e mãe. O próprio Jesus teve uma atitude de obediência em relação a seus pais (Lc 2.51). Contudo, essa postura favorável à importância da família não o impediu de dizer: “Quem é minha mãe? E quem são os meus irmãos? (...) Quem faz a vontade do meu Pai que está no céu é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12.48-50). Está claro: a fidelidade a Deus precede tudo.

4. Reflexões a partir do texto

Aparentemente, o texto em questão fala pouco ou nada da graça de Deus ou, se assim o queremos, é pobre de Evangelho. A teologia luterana enfatiza a salvação por graça e fé. E quando se fala da graça de Deus, ela quer ser compreendida em toda a sua radicalidade, no sentido de que a salvação é iniciativa e obra exclusiva de Deus em favor dos seres humanos. Por outro lado, diversos teólogos, especialmente Dietrich Bonhoeffer, chamaram a atenção para o risco de fazer da graça de Deus “graça barata”. Barateamos a graça quando ela não conduz para o compromisso e quando faz pouco caso da cruz. Dito de outra forma, quando a salvação recebe contornos de “graça barata”, a graça de Deus como tal ainda não foi devidamente entendida.

As palavras que Jesus dirige aos discípulos no seu tempo e com a linguagem da época podem ser entendidas como um alerta a respeito do “custo” da salvação. A angústia do caminho da cruz não é imaginária, é real. O batismo referido no v. 50 é necessário, mas não desejável. A presença do Reino de Deus entre as pessoas é motivo de alegria e esperança, mas, até que seja pleno, ainda implica oposição, resistência, aflição e morte. E quando o Evangelho deixa claro que a cruz diz respeito também aos discípulos e não apenas ao Mestre, devemos ter em mente que também a comunidade de Lucas está passando por essa experiência. Isto significa dizer que o desafio colocado por Jesus questiona em profundidade a perspectiva sobre a vinda do Messias. Conseqüentemente, questiona também o conceito de felicidade difundido na modernidade, associado à idéia da ausência de problemas e sofrimentos. Conceito que, em nosso entender, também é fortemente assimilado pelos cristãos.

A justiça de Deus, manifesta na cruz como juízo sobre o pecado da humanidade e como graça a partir do amor de Deus, provoca divisão entre os seres humanos. Não que Deus o queira, mas porque as pessoas são o que são. A Boa Nova da salvação, ainda que obra exclusiva de Deus, pede tomada de posição por parte das pessoas. Deus não obriga a aceitar o seu presente; ele o coloca à disposição. Seja dito que Deus quer que todos sejam salvos e conheçam a verdade (1 Tm 2.4), o que nos compromete com todas as pessoas e nos tira a possibilidade de viver sossegados em nosso canto, como se nada tivéssemos a ver com os problemas dos outros. Contudo, o desafio colocado pelo Evangelho tem endereço e interpelação pessoal. Por esse motivo, a família, tantas vezes valorizada por Jesus, pode ser o lugar onde nem todos partilham da mesma atitude em relação ao Reino de Deus. Pois este, enquanto não for pleno, aponta simultaneamente para o túmulo vazio (esperança) e para a cruz.

Esse texto bíblico me lembra de um encontro de mulheres do Sínodo com a assessoria de uma colega pastora. Ela conduziu o tema “O nosso mundo tem salvação” de tal forma, que criou aqueles momentos raros em que as pessoas têm liberdade para expor dificuldades e problemas vivenciados por elas mesmas ou por pessoas conhecidas. Fiquei impressionado com o número de mulheres que ainda enfrenta oposição por parte do marido pela simples vontade de participar de um grupo de mulheres ou por gostar de ir ao culto. Também foi bom ouvir como muitas venceram a resistência usando como meio o amor, a firmeza e a persistência. Quer dizer, as palavras de Jesus são realistas e atuais. A resistência ao Evangelho nos lembra da angústia da cruz e aponta para a importância de um comprometido testemunho de fé. As divisões que ainda existem nos lembram também do nosso pecado e nos levam a orar “Venha o teu Reino”.

5. Indicativos para a pregação

O que foi exposto até aqui já dá alguns elementos com vistas à pregação. O conteúdo do texto deve soar estranho aos ouvidos da comunidade, mas também pode ajudar a prender sua atenção. Anunciar que Jesus veio para atear fogo na terra, trazer a divisão e não a paz e provocar divisão na família é motivo para que as pessoas fiquem de antenas ligadas. Talvez se perguntem: “Mas como pode ser isto?” Este “gancho” é uma boa introdução para a pregação.

Os passos seguintes poderiam ser:

a) Falar da cruz – Ir para Jerusalém não foi um passeio para Jesus. A angústia, a oposição ao Evangelho e o sofrimento acompanham o caminho que conduziu para a cruz.

b) Falar da justiça de Deus – O “batismo” mencionado no texto é gesto de Deus em favor da humanidade. Nele está contido o amor de Deus por todas as pessoas. Deus o fez por todos, mas também em favor de cada um.

c) A salvação e a cruz – Em Jesus, Deus percorreu o caminho que seria nosso para perdoar e salvar. Aqui está subentendido no texto o Evangelho, que é dado como presente e por graça. Mas aceitar o presente não significa viver num mar de rosas. Testemunhar o Evangelho também traz dificuldades.

d) Exemplificar – Deus não quer a divisão entre as pessoas e na família. Contudo, enquanto o Reino não for pleno, isso continuará acontecendo. O presente que Deus dá deveria nos motivar a não fugir de conflitos decorrentes do testemunho, pois estes podem ser um indício de que estamos barateando a sua graça. Exemplos como o do encontro de mulheres, citado acima, podem ajudar.

Bibliografia

O EVANGELHO da Libertação Segundo Lucas. Vol. IV; Petrópolis: Vozes, 1979.
SCHMID, Josef. El Evangelio Según San Lucas. Barcelona: Editorial Herder, 1968.
STÖGER, Alois. O Evangelho Segundo Lucas – 1ª parte. Vol. 3/1; Petrópolis: Vozes, 1973.

Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Nilo Orlando Christmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 13º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 49 / Versículo Final: 53
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2003 / Volume: 29
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7091
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