Lucas 16.19-31

Auxílio Homilético

25/09/2016

 

Prédica: Lucas 16.19-31
Leituras: Amós 6.1a,4-7 e 1 Timóteo 6.6-19
Autoria: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/09/2016
Proclamar Libertação - Volume: XL

 

Apego à riqueza – separação de Deus e entre as pessoas

 

1. Introdução

Os três textos bíblicos indicados para a pregação e as leituras têm em comum o tema da riqueza. Amós dirige sua acusação profética contra a elite econômica de seu povo, que se regala com suas riquezas, vivendo do bem e do melhor (moradia, comida, bebida, música), sem se importar com a desgraça do povo pobre. E sua acusação culmina no anúncio da consequência dessa desvirtuação de vida: o exílio e o fim dos privilégios.

Na epístola, o apóstolo aponta para o perigo de se deixar seduzir pela riqueza e orienta Timóteo em relação a uma postura própria de fidelidade à fé e de exortação às pessoas com posses para a prática do bem a partir de seus bens materiais.

O evangelho, texto de pregação, apresenta-nos, em forma de parábola (Gleichniserzählung), a contraposição de duas situações de vida – riqueza e pobreza – que causam separação entre as pessoas e com Deus e, por extensão, o consequente questionamento sobre o fundamento e a compreensão do sentido da vida. Assim, os três textos complementam-se mutuamente e, havendo tempo e disponibilidade para tal, que se aproveite a leitura dos mesmos na celebração.

O texto de prédica, Lucas 16.9-31, já foi analisado em três exemplares do PL: vol. 4 para o 1º Domingo após Trindade; vol. 20 e vol. 34 para o 19º, respectivamente 18º Domingo após Pentecostes.

2. Exegese

A mudança radical de destino de pessoas (veja no Magnificat em Lc 1.5153) e a questão riqueza/pobreza (Lc 6.20-26; 12.16-21; 12.33s; 14.33) são temas frequentes no relato de Lucas. No cap. 16, o evangelista estruturou seu relato com duas parábolas, de tal forma que, na primeira (16.1-9), é elogiada a atitude de entrega e disposição altruísta de alguém que lida com dinheiro e, na segunda, no final do capítulo (16.19-31), descreve o destino fatal de quem se apega egoisticamente à riqueza. Entre essas duas parábolas há referências à avareza dos fariseus (16.14s) e à “lei e os profetas” (16.16-18), tema que retorna na segunda parábola, nosso texto de análise (v. 29).

A parábola (na realidade, uma narração parenética – Beispielerzählung) inicia com a descrição das duas pessoas centrais do texto e da respectiva situação de cada qual (v. 19-21). O rico é caracterizado por sua vestimenta cara e preciosa (púrpura e linho finíssimo), bem como por um estilo de vida esplendoroso. A descrição do pobre é mais detalhada: coberto de chagas que os cães de rua vinham lamber; deitado à porta da casa do rico, ou seja, o verbo grego (ballo) indica que ele perdeu sua mobilidade. Além disso, sofre de fome, desejando alimentar-se das migalhas que caem da mesa do rico (Lc 15.16; Mt 15.27). Tudo isso destaca a profunda miséria em que ele se encontra. Mas a sua riqueza reside em seu nome – Lázaro –, enquanto do rico diz-se apenas “certo homem rico”. O nome é uma confissão de fé: Deus socorre. Portanto a descrição destaca o contraste entre a posição social (rico – pobre), a apresentação (vestimenta pomposa – coberto de chagas), o estilo de vida (banquetes diários – fome) e o local de vida (casa suntuosa – calçada à frente daquela). A descrição sugere que ambos são vizinhos, mas aparentemente não se conhecem.

A ação dentro do relato inicia ali onde geralmente se encerram as narrativas: com a morte. Ambos os personagens morrem (v. 22) e, à semelhança do contraste durante a vida, também agora a situação de ambos é relatada radicalmente oposta: enquanto do pobre não se menciona o sepultamento, mas se diz apenas que é levado pelos anjos diretamente “para o seio de Abraão”, do rico é dito que foi sepultado e que se encontra no hades, no reino dos mortos. Ali também se encontra o pobre (como a cena a seguir evidencia), porém no “seio de Abraão”.

A partir desse momento, a contraposição entre ambos encerra-se e o relato concentra-se no rico: a descrição de sua situação “em tormentos” e seu diálogo com Abraão. Enquanto durante a vida o rico não reparara, em sua altivez, no pobre na calçada em frente à sua casa, agora ele o vê junto a Abraão. E ele implora a Abraão – “pai Abraão” – que o alivie dos sofrimentos, inclusive mediante a ajuda de Lázaro. Pede a Lázaro que molhe seu dedo na água e refresque sua língua para aliviá-lo dos tormentos (v. 24). Essa primeira parte está estruturada de forma paralela ao período de vida dos dois. O rico tinha tudo de bom e agradável, enquanto Lázaro penava em sua miséria. Agora é o inverso: Lázaro encontra-se num local agradável, enquanto o rico se encontra num “local de tormentos” (v. 28).

Além disso, enquanto em vida o rico não se dignava a oferecer algo ao pobre Lázaro para aliviar seu sofrimento, agora Lázaro é para “descer” e aliviar o sofrimento dele. O pedido é negado e, na resposta (v. 25), Abraão justifica a negativa, contrapondo o destino de ambos à semelhança da vida terrena de ambos: as coisas boas (ta agatha) – os males (ta kaka) durante a vida; agora ser consolado (parakaleitai) – estar em tormentos (adynasai). Justifica, além disso, o não atendimento ao pedido pelo fato de haver um grande abismo (chasma mega) entre a localização de cada qual que impede o ir e vir de um lado para outro (v. 26). Novamente uma analogia à situação terrena em relação ao abismo existente entre a situação de cada um: a opulência e a autossuficiência do rico impediam que pudesse ver o pobre à frente de sua casa; a invalidez e a situação miserável do pobre não permitiam aproximar-se do rico.

Diante da negativa do atendimento, o rico faz uma segunda tentativa, dessa vez não em seu benefício, mas em favor de seus irmãos (v. 27s), novamente mediante a ajuda de Lázaro. Mais humilde do que no primeiro pedido – “eu te imploro” (erōtō se) –, ele pede a Abraão que envie Lázaro para junto de seus irmãos como testemunha, a fim de que também eles não venham para “este lugar de tormento” – uma descrição precisa do reino dos mortos: um lugar em que se sofre castigo em forma de tormentos. Também esse pedido é negado (v. 29) com um argumento característico da tradição judaica: eles têm Moisés e os profetas – síntese da Escritura Sagrada na época –, onde todo fiel tem a orientação correta para a sua vida com base na fé.

O rico faz uma terceira tentativa, apontando para o efeito maior no caso de alguém ressurgir dos mortos e ir falar com os irmãos (v. 30). Uma clara referência à ressurreição de Jesus, muito provavelmente um acréscimo do próprio evangelista. Também esse pedido é negado: se não dão ouvidos a Moisés e aos profetas, também não se deixarão convencer, mesmo que alguém ressuscite dentre os mortos. Portanto a resposta de Abraão aos dois últimos pedidos rejeita qualquer efeito miraculoso que justifi casse, provocasse ou substituísse a fé. Moisés e os profetas e o Cristo ressurreto relembram sempre de novo o povo de Deus para não esquecer nem negligenciar a fé, a obediência e o amor ao próximo.

Em suma, essa narrativa parenética mostra, no exemplo do rico, uma compreensão de vida desvirtuada que não se entende a partir da confiança em Deus e, consequentemente, também não pratica o amor ao próximo. Por outro lado, o nome de Lázaro expressa uma compreensão de vida na fé: Deus socorre. Por isso tem a promessa de estar acolhido nos braços de Abraão.

3. Meditação

Um dos aspectos que chama a atenção nessa narrativa parenética é a proximidade dessas duas pessoas e, ao mesmo tempo, a grande distância entre ambas. O pobre jaz à porta do rico, mas ele não o vê, porque, em sua autossuficiência, que se expressa em sua riqueza, seu estilo de vida, ele só tem olhos para si mesmo ou, no máximo, para quem está na mesma situação que ele. Nossa realidade atual está bem retratada por esses dois versículos iniciais do texto. As grandes desigualdades sociais, a concentração de renda em mãos de poucos, a ganância das pessoas, de um lado; do outro lado, pobreza, doenças, exclusão social, sofrimento por ter que fugir de sua terra/pátria. O apego à riqueza, tendo nela a razão única e última de sua vida, fazendo dela o seu deus – é isso que continua sendo o pecado da humanidade e que torna, para muitas pessoas, essa vida “um lugar de tormentos”.

Diante disso, a continuidade da narrativa mostra a inversão da situação, do destino dessas duas pessoas. Com que finalidade? Para mostrar o restabelecimento da justiça, de uma realidade em que vida digna é o propósito de Deus para todas as pessoas. A narrativa justamente quer motivar os leitores a optar por um estilo de vida que não corresponda à situação do rico no mundo dos mortos, respectivamente ao pobre Lázaro em vida. Pelo contrário, quer desafi ar para uma decisão ética que leva a uma postura em favor da justiça, da solidariedade, do repartir, do acolher. O texto motiva e anima para a construção de uma comunidade, mais, de uma sociedade inclusiva. A proposta de Jesus, expressa em toda a sua maneira de ser, foi de acolher, valorizar, integrar justamente quem, aos olhos dos autossuficientes, não merecia vez. Portanto a proposta de Jesus é em favor de uma sociedade na qual há espaço para todas as pessoas na mesma mesa abundantemente preparada por Deus. Isso é possível – e para tal essa narrativa nos convida – quando todas as pessoas – ricas e pobres – entendem as suas vidas a partir e na presença de Deus, assim como o nome Lázaro expressa.

Portanto o texto não é contra a riqueza ou contra os ricos em princípio. Mas ele convida as pessoas ricas ou que se identificam com o rico a se confrontar com a pergunta pelo erro dele. O erro do rico foi ser autossuficiente em sua riqueza, esquecer-se de Deus, o doador da vida, e de não ver, não se solidarizar com o pobre, com a pessoa que precisa de sua ajuda. Para sair dessa situação, ele não precisa nem pode consegui-lo por conta própria. Importa ouvir a palavra de Deus – “eles têm Moisés e os profetas”.

Da mesma forma, o texto não idealiza a pobreza e o sofrimento com a consequente recompensa no céu. O pobre não é melhor do que o rico por ser pobre. De Lázaro só se fala de sua fome, seu sofrimento, seu abandono. Não se diz que ele tem fé em Deus nem se destacam suas qualidades morais. A partir de seu nome é expresso que a ele só resta esperar em Deus.

Quem é esse pobre hoje? O assalariado que tem seu salário achatado por medidas de ajuste fiscal. O aposentado que não recebe reajuste de sua aposentadoria conforme o índice da inflação. A senhora idosa que, por não ter plano de saúde privado, espera meses por um exame ou uma cirurgia nas filas do SUS. Jovens das periferias que são aliciados por gangues para o tráfico de drogas.

Mas o ser pobre não é garantia de ser rico junto a Deus. Mesmo sendo economicamente pobre, poderá ter coração de rico. Isto é, viver de tal forma como se a vida estivesse em suas próprias mãos. Ou vivendo de forma irresponsável em relação a si mesmo, às pessoas de seu convívio, ao ambiente em geral.

A narrativa inicia com uma breve observação sobre a situação dessas duas pessoas em vida, e a seguir há uma extensa reflexão sobre a situação após a morte. E essa reflexão é como um olhar retrospectivo sobre a vida dessas duas pessoas, em especial o rico. Como encaramos a própria morte? Como avaliamos a nossa vida diante da morte? A morte, respectivamente a consciência de que somos mortais, poderá ser como um espelho em que contemplamos nosso viver. A consciência de que também nós estaremos um dia no “mundo dos mortos” é oportunidade para olhar para a nossa vida e imaginar onde nós estaríamos: “no seio de Abraão” ou no “lugar de tormentos”?

Portanto, diante das contradições de nosso mundo, a miséria de muitas pessoas em contraste com a ganância, a corrupção, a arrogância de tantas outras; diante da graciosa preservação da natureza e da vida por Deus em contraposição ao esbanjamento, à destruição do meio ambiente por larga escala de pessoas – diante disso nós somos confrontados com a pergunta: o que, em última análise, é a base que dá sustentação para a nossa vida? Em que depositamos a nossa confi ança – em nós mesmos, em nossas posses ou em Deus doador da nossa vida e que quer oportunizar, por nosso intermédio, vida para todas as pessoas?

4. Imagens para a prédica

Tanto em vida como depois da morte, o rico e o pobre Lázaro viviam muito próximos, mas, ao mesmo tempo, muito distantes. Como diz o versículo 26, entre ambos há um enorme abismo, abismo esse que já existia entre eles na situação de vida de ambos.

Abismos semelhantes existem em grande número em nossas sociedades, ocupando os mesmos espaços: entre pessoas bem situadas economicamente e pessoas com dificuldades para se manter; entre grupos políticos que não se entendem; entre movimentos religiosos que se combatem; entre familiares que não conseguem conviver. Que abismos há na comunidade de fé que ouvirá a mensagem sobre esse texto?

Como superar esses abismos? Entre partidos políticos, entre familiares em desentendimento só o diálogo e a construção do respeito mútuo podem transpor as separações. O abismo entre pessoas que compartilham a mesma fé – é o caso do rico e de Lázaro, é a situação da comunidade reunida em culto – somente a atenção à palavra possibilita isso. Assim como os irmãos do rico têm Moisés e os profetas, a quem devem dar ouvidos, assim a comunidade cristã tem a mensagem do Cristo ressurreto, o testemunho dos apóstolos.

Werner Fuchs, no PL 4, p. 88-95, sugere uma prédica dialogada: depois de uma introdução pelo pregador, conduzir o diálogo a partir de perguntas motivadoras. Pode ser uma boa ideia.

Quanto a imagens específicas, sugiro consultar na internet onde há uma série de gravuras sobre essa narrativa e que também poderiam servir como motivação para o diálogo.

5. Subsídios litúrgicos

Considerando os aspectos das contradições e dos abismos existentes na sociedade, causados, não por último, pela falsa orientação de vida – no exemplo do rico –, seria oportuna a oração do Kyrie, pedindo pela misericórdia de Deus. Sugestão de hino: Pelas dores deste mundo, de Rodolfo Gaede Neto.

De forma semelhante, a oração de confissão de pecados poderia enfocar essa dimensão de fundamentação de vida em base falsa, que tem como consequência um modo de vida desconexo com a vontade de Deus.

Bibliografia

BOVON, François. El Evangelio según San Lucas. Salamanca: Sígueme, 2005. Biblioteca de Estudios Bíblicos, v. 3 (87).

SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen/Zürich: Vandenhoeck/Ruprecht, 1986. Das Neue Testament Deutsch, v. 3.


 


Autor(a): Martin Volkmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 19º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 19 / Versículo Final: 31
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2015 / Volume: 40
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 35203
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