Tendências atuais de valorização das noções de indivíduo, individualidade na sociedade e influência dos novos movimentos religiosos neste quadro

22/11/1994

TENDÊNCIAS ATUAIS DE VALORIZAÇÃO DAS NOÇÕES DE INDIVÍDUO, INDIVIDUALIDADE NA SOCIEDADE 

E INFLUÊNCIA DOS NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS NESTE QUADRO

Marcelo Camurça

1. Indivíduo, individualismo, sociedade moderna

A noção de indivíduo surge associada à da modernidade no século XVIII. Neste processo de imanentização do Sujeito no ato de pensar, o homem surge como fonte da Razão, liberto de qualquer influência transcendente, centro do universo inteligível.

Lembrando o antropólogo Louis Dumont, esta sociedade moderna fundada no individualismo caracteriza-se pelo primado do indivíduo sobre a totalidade, advindo daí as noções de vontade, mudança, liberdade e igualdade enquanto expressões da iniciativa desse Sujeito individual; e a ordem social passa a ser o pacto, o contrato entre essas múltiplas vontades individuais. Isso se dá em oposição às sociedades tradicionais fundadas no holismo, primado do Todo sobre o indivíduo, calcadas na Ordem e na Tradição que abarcam o conjunto da sociedade, garantindo sua imutabilidade.

Vários autores se debruçaram sobre o fenômeno do individualismo moldando esta sociedade moderna. G. Simmel aponta o surgimento da individualidade' ' como fruto de tendências sociais, como a divisão do trabalho, o surgimento das metrópoles etc., situando a constituição de um indivíduo psicológico que se define de dentro para fora, cultivando uma subjetividade que o diferencia dos outros, o que gera como conduta social a atitude blasé, reserva, aversão e indiferença em relação ao outro.

Norbert Elias fala do surgimento da intimidade, consciência do próprio ser como algo fechado dentro de si, no bojo do processo civilizatório, quando, para evitar um controle externo pelo Estado, instituiu-se um autocontrole, com a disciplina do corpo, normas de etiqueta, boas maneiras etc. Richard Sennett vê a sociedade do nosso século como uma sociedade intimista, onde os valores individuais são projetados na esfera pública como referenciais para a sociabilidade. Cristopher Lasch fala de uma cultura do narcisismo, que leva o indivíduo a urna contração do eu, apagando suas fronteiras com o meio social, e uma fusão com o seu pequeno ambiente, levando a um estilo minimalista de vida com o consequente enfraquecimento dos laços sociais.

Achamos que essa modernidade que constituiu o indivíduo como sujeito de independência, vontade e liberdade terminou enredando-o no sistema invisível do Mercado que o subjuga e o escraviza.

A mesma sociedade que faz a apologia do indivíduo é a que o impede, pelas forças do Mercado e da racionalidade sistémica (a tecnologia), de se realizar plenamente. Esta é a contradição da modernidade. De um lado o estímulo através da liberação da consciência individual, do outro a coerção através da desumanização promovida pelos imperativos da estrutura social. De um lado a harmonia na vida privada e do outro a competição implacável no mercado público.

Face a esses paradoxos do mundo moderno: a valorização da noção do indivíduo com a consequente promessa de liberdade e igualdade e o império do Mercado e da dimensão sistémica, apresentamos novas tentativas de sociabilidade, ainda dentro da cultura do individual, que emergem dentro dessa crise da modernidade''.

2. Mundo pós-moderno e pós-socialista

Tentaremos aqui mapear algumas experimentações societárias que estão surgindo no mundo e no nosso país, alternativas aos modelos imperantes do liberalismo e do comunismo que marcaram este último século.

A crise parece apontar a falência da ideia de progresso e do grande projeto da Revolução, que pretendia tirar uma forma de sociedade de cena e colocar no seu lugar outra inteiramente nova. Hoje a palavra-chave parece ser Sociedade Civil, em que a noção de convivência, tolerância, pacto entre os diferentes atores da sociedade substitui a pretensão de se hierarquizar ou de se nivelar. Neste contexto a cidadania, centrada na garantia dos direitos a todos os indivíduos, tornando-os participativos e solidários, adquire relevância.

Em lugar do assalto e da conquista do Estado, procura-se hoje democratizar o Estado, através de conselhos dos cidadãos (de saúde, da mulher, da criança etc.) e da descentralização das instâncias.

O telos do progresso ou da sociedade sem classes, cujo finalismo presidia toda a ação social no presente, ou seja, atuar politicamente no sentido de um projeto futuro, cede lugar ao experiencial, à ética do instante, em que, como afirmou o antropólogo Rubem César Fernandes, o sentido não está dado pela capacidade de prever mas pela aventura da sociabilidade — Por que a ação social e a política dependeriam do happy end para ter valia?

Em lugar de conceitos como povo, tomado como um sujeito unificador universal e síntese de individualidades, e classe, que define uma posição do indivíduo na sociedade, descobrem-se múltiplos atores sociais, não mais amalgamados mas segmentados: mulher, negro, favelado, menino de rua, enfim, indivíduos com vários pertencimentos e não classificados rigidamente numa posição.

Com o esmaecimento da lógica posicionai classista e o fortalecimento da relacional, abrem-se as possibilidades para parcerias tópicas, parciais, que não necessitam de coerência estratégica para serem entabuladas, estabelecendo-se assim uma colaboração apesar das diferenças entre setores que até então não haviam dialogado devido ao esquema anterior dos blocos ideológicos. É o encontro de gente que nunca se viu, segundo Rubem César, que vem se materializando em articulações do mundo das fundações filantrópicas com o mu n do das instituições de caridade e obras sociais e com o mundo das ONG’s.

Por fim essas novas combinações ensejam uma retomada do ético, moral em detrimento do político, enquanto da esfera dos interesses, engendrando um;i revalorização da gratuidade e do despojamento, que reaproxima o discurso social do religioso, a política da caridade.

Escolhemos como exemplo concreto dessas novas experimentações a Ação pela Cidadania contra a Fome lançada pelo Betinho.

A ação se dirige às pessoas, à consciência de cada um, e não aos movimentos e às classes. Tem como palavra-chave cidadania: co-responsabilidade pela vida em sociedade, cidadania no cotidiano, e não só na política, diante da formalidade das leis. Seus fundamentos estão menos na política e mais nos valores: atitude contra a indiferença, medo e rejeição, pois cidadania implica generosidade. A organização da campanha não é piramidal, a questão central é a comunicação, o problema é como viabilizar as parcerias e articular as múltiplas iniciativas. Coloca-se contra os planos totais e estratégicos, com a perspectiva singela: o que eu posso fazer, onde estou. Isto a aproximou da linguagem das religiões (que têm tido participação marcante na campanha): generosidade, com paixão, caridade e amor.

3. New Age, Nova Era, nova consciência religiosa

Encontramos no discurso místico dos múltiplos movimentos New Age uma alternativa para o paradoxo da modernidade explicitado no primeiro item do nosso texto. Embora teologicamente impreciso, constituído como colcha de retalhos, o que torna difícil encontrar nele uma identidade coerente, esse discurso, pelo seu ardor, provoca uma nova mentalidade, um novo imaginário na sociedade em crise.

Surge do individualismo moderno, da busca existencial, mas recorre ao sistema holista tradicional, onde o indivíduo se dissipa no Todo. Parte do ' Ego (autocentramento, egoísmo) para chegar ao eu (integração no todo).

Embora de matriz individual, o que lhe dá uma marca cosmopolita ocidental, a Nova Consciência Religiosa é pluricultural. Vai buscar seus fundamentos em cosmologias orientais e indígenas, culturas tradicionais milenares.

Pelo seu discurso mítico, a busca empreendida pelo eu termina por religar os vínculos segmentados pela modernidade (economia, política, ideologia), chegando à regeneração cósmica.

Esse discurso mítico (que recorre a todos os poderes e línguas espirituais) produz um excesso de significação para o vazio da crise de sentido moderna. Para Levi-Strauss o pensamento mítico, ao recorrer à bricolage (arranjo feito de sobras de elementos diversos), conduz a uma atitude contra o não-sentido.

Realiza todo um jogo combinatório de possibilidades de estabelecer relações inusuais. Transita por várias culturas religiosas, pois trata o Sagrado como mais fundamental do que as religiões, percorrendo esses campos de sentido que são experimentados e deixados sem serem negados ou desrespeitados. Dessa forma transforma-se num discurso e numa prática, segundo Leila Amaral, internamente dialogizados.

Qual a interpelação para as igrejas cristãs históricas e institucionalizadas que a busca caleidoscópica do New Age provoca? Sem escapar à modernidade (busca e opções individuais), na Nova Era o indivíduo excede-se a si mesmo (incorpora o outro). Ira/, a diversidade contra a petrificação do único: O Pós-Moderno é o olho moderno, liberado do medo e inibições modernas. (Baumann 1991). O discurso e práticas New Age apontam para uma simbólica da busca com capacidade de criar mitos, produzir sentido (lembrar que religião é principalmente narrai i vá, imagem, encenação e não definição lógica). E por esta via pode sugerir novas formas de ultrapassar o paradoxo da modernidade: frente ao anonimato moderno, organizam comunidades; por sua integração com a natureza, o planeia e o cosmos, comprometem-se com a defesa do homem, da vida e do planeta.

O discurso mítico da Nova Era põe em relação os diversos. Estabelece uma nova forma de sociabilidade, a do nomadismo (o indivíduo com vários pertencimentos) face ao anticlímax da sociedade moderna: remediando a solidão do indivíduo que vive a dor lancinante de descobrir-se único responsável por si mesmo (Marcel Gauchet) por meio do contato com as diversas alteridades encontradas na sua migração.

O New Age infunde um novo imaginário na sociedade, reescreve, reinventa o social, impedindo a sociedade de extinguir-se.

4. Evangélicos e pentecostais

A relação deste segmento com o paradoxo da modernidade também se encontra matizada pela sua origem moderna e pelas suas experimentações, enquanto formas de ultrapassagem da crise de sentido desta modernidade com recurso a práticas tradicionais.

A identidade evangélica é individual, a transformação ocorre a nível do indivíduo, sua conversão significa um novo nascimento. Essa transformação pessoal, contudo, articula-se a uma totalidade transcendente, ela estabelece conexão entre o social e a eternidade, pois o que se passa no mundo é extensão da guerra entre o Bem e o Mal, Deus e Satanás, que se trava no plano celeste.

A não-participação civil dos evangélicos não significa sua condição anômica; se os enfocarmos nas igrejas, nos cultos, veremos aflorarem as práticas de cidadania; nas orações de libertação vemos o pastor pentecostal como mais um da comunidade no combate para amarrar o demônio, atualizando desta forma o princípio protestante do sacerdócio universal dos fiéis. O Censo Institucional Evangélico, realizado pelo Núcleo de Pesquisas do ISER, revelou 89 obras sociais evangélicas (creches, orfanatos, asilos e hospitais), quebram um pouco a imagem de que o segmento só se interessaria pelo proselitismo pela expansão da palavra de Cristo.

Se a ciência política afirma a equação de quanto maiores a renda e escolaridade tanto maior a participação em organizações sociais, no caso evangélico, quanto mais pobreza e menos escolaridade, tanto maior ímpeto organizativo das igrejas. Aqui se combinará a iniciativa do indivíduo com participação social, pelo viés da salvação pessoal.

Segundo os evangélicos, Deus não socorre a quem não se dispõe a vencer, não ajuda a quem se sente derrotado. A atitude confiante na oração é garantia de triunfo do bem sobre o mal. Isto nos lembra o individualismo do sucesso, a vontade de vencer anotado por Lasch para a sociedade norte-americana, porém aqui o fenômeno pode ser visto como uma forma de cobrir o paradoxo moderno da estrutura que domina o indivíduo, por meio da integração ativa do indivíduo na guerra espiritual que se passa no Universo entre o Bem e o Mal.

O inconformismo frente às suas limitações materiais e físicas, vistas sempre como vitórias do mal, torna os evangélicos paladinos que afrontam o mal de unia forma individual, mas que pela soma das ações dessas iniciativas individuais de salvação e a participação engajada do salvo nessa epopeia celeste, enquadram comunidades e uma sociabilidade.

Suas preces são marcadas por uma atitude agressiva diante dos problemas da vida: Senhor, eu não aceito esta situação!, utilizam um trocadilho protestante que deriva do termo oração: ora — ação, ou seja: peça a Deus mas faça a sua parte.

O salvo tem o compromisso de salvar o próximo de Satanás: enfermidades, vícios, problemas financeiros etc.; não só em escala individual, pois na pesquisa de Wilson Azevedo este encontrou referências ao gafanhoto (Deuteronômio 28.38,42) em que este é associado pelos evangélicos ao demônio causador da inflação que terá de ser combatido.

Observação: Determinadas considerações feitas por mim nos itens l e 3 do artigo foram tomadas dos textos: A Religião da Pós-Religião (uma Revisão Bibliográfica) e Estímulo aos Sentidos; uma Semana no Vale Dourado, de Leila Amaral. No item 2, de Rubem César Fernandes em Votos para uma Nova Década, e no item 4, dos textos Governo das Almas; as Denominações Evangélicas no Grande Rio, de Rubem César Fernandes, e Oração Pentecostal, do pastor Wilson Azevedo Jr.

5. Bibliografia

AMARAL, Leila. A Religião da Pós-Religião (uma Revisão Bibliográfica). RJ, Museu Nacional-PPGAS, (mimeo) 1992.
— .Estímulo aos Sentidos; uma Semana no Vale Dourado. RJ, Museu Nacional-PPGAS, (mimeo) 1993.
AZEVEDO JR., Wilson Correia de. Oração Pentecostal. RJ, Museu Nacional-PPGAS, (mimeo) 1993.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador; uma História dos Costumes. RJ, Jorge Zahar, 1990.
FERNANDES, R. C. Governo das Almas; as Denominações Evangélicas no Grande Rio. RJ, Núcleo de Pesquisa do ISER, 1993.
— Votos para uma Nova Década. Comunicações do ISER, ano 10, n- 40, 1991. LASCH, Cristopher. A Cultura do Narcisismo. RJ, Imago, 1983.
SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público; as Tiranias da Intimidade. SP, Companhia das Letras, 1988.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida mental. In: VELHO, O., org. O Fenómeno Urbano. RJ, Zahar, 1979.


 


Autor(a): Marcelo Camurça
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Artigo
ID: 17751
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