Trabalho com Agricultores Assentados

28/11/1988

TRABALHO COM AGRICULTORES ASSENTADOS

Günter Wolff

l — O Movimento dos Sem-Terra

O Movimento dos Sem-Terra - MST - em Santa Catarina iniciou em 82/83, e a primeira ocupação organizada pelo MST foi no dia 25 de maio de 1985. Nestes dias o Ministro do Mirad no Congresso da Contag em Brasília apresentou a proposta do PNRA; e esta ocupação teve repercussão nacional. Foram 1.500 famílias que ocuparam 16 fazendas no oeste catarinense. Em SC há em torno de 140.000 famílias sem terra e no oeste existem em torno de 40.000 famílias sem terra.

O MST está organizado em todo o país e segue o seguinte esquema de organização: na comunidade há um grupo de sem-terra organizados, estes escolhem dois para fazerem parte da comissão municipal (que é a organização de várias comunidades ali representadas). A comissão municipal escolhe dois representantes que participam da comissão regional. O congresso estadual escolhe a comissão estadual que, por sua vez, tem dois representantes na coordenação nacional, tendo cada uma uma executiva.

Das 16 mil famílias assentadas durante o l. PNRA, até dezembro de 1987, no país, 90% são do MST, o que vale também para o Estado de Santa Catarina. Neste período deveriam ter sido assentadas 450.000 famílias no país segundo a programação do l. PNRA, mas apenas 3,5% do plano foi executado e a propaganda governamental à Ia Sarney diz: Tudo pelo social! No Estado, até dezembro de 1987, havia 9 acampamentos com 1.045 famílias e 27 assentamentos com 1.400 famílias controlados pelo MST.

A ocupação de terra é a forma extrema de pressão (depois que o resto deu em nada) para abrir canais de negociação com o Mirad e o governo. A prática tem mostrado que somente uma ocupação consegue abrir um espaço para o diálogo com o governo. Documentos, cartas, pedidos e concentrações são apenas úteis porque são forma de aprendizagem, pois o processo de aprendizagem se compõe de teoria e prática. O governo só trabalha sob pressão, meros pedidos não adiantam nada.

Nas ocupações de 1985, o MST conseguiu algo inédito até então: um acordo com o Mirad e o governo estadual, no qual o governo se compromete a assentar 2.000 famílias em 120 dias, algo que até hoje (dez. 87) ainda não cumpriu. Isto que, conforme o Ia. PNRA, deveriam ter sido assentadas no Estado 8.700 famílias até 1987, tendo sido assentadas, no entanto, apenas 1.400 famílias, e isto com muita luta e pressão.

Os assentamentos na verdade não são melhores que os acampamentos em suas condições de vida. É apenas a transferência de miséria para um local definitivo. Em apenas 8 dos 27 assentamentos no Estado a terra é fértil; os demais assentamentos têm terra ruim. Por ex,: no assentamento de Irani se precisa de 33 toneladas de calcário por hectare para fazer correção do solo; terra pior não existe no Estado. As famílias de lá estão assentadas há dois anos e até hoje não colheram nada. Além disto, da ocupação de maio de 1985 até fim de 87, muitas famílias ainda não foram assentadas, estão há dois anos e meio em acampamento. Tem que ter muita esperança para aguentar isto, para depois ser assentado numa terra fraquíssima, sem comida e sem dinheiro para o destoque e o preparo do solo. Não sei por que a UDR e a direita neste país tem tanto medo da reforma agrária do governo. Não precisam ter medo porque o governo não vai fazer reforma agrária alguma, apenas vai atender focos de tensão, quer dizer ocupações. O governo até hoje só cumpriu míseros 3,5% do plano assinado em 10/10/85. Além disto já o mudou reduzindo 400.000 famílias do total a serem assentadas e esticando o prazo em mais dois anos, o que na verdade reduz as metas pela metade. Entre o PNRA e a sua realização existe uma distância maior do que entre céu e inferno.

Para se defender deste total abandono, os assentados procuram novas formas de organizar a produção tal como o trabalho coletivo e as associações. Mesmo assim, nesta terra fraca não aguentarão por muito tempo e serão obrigados a abandoná-la se a política para o setor não se alterar. Se os pequenos proprietários que já têm certa infra-estrutura para produzir vão à falência, como os assentados irão sobreviver? A conjugação de forças em associações e grupos de trabalho coletivos no momento é a única saída para resistir na terra duramente conquistada. Se olharmos para os números, nos vem o desespero: de 1960-80 migraram neste país 28 milhões de pessoas e, nos últimos dois anos, 100 mil pessoas perderam suas terras. Esta conta sempre estará em vermelho e este PNRA nunca reverterá o processo de expropriação dos camponeses; só no oeste catarinense há 6.000 bóias-fria, que surgiram há pouco tempo.

Se olharmos para o trabalho da Igreja também não vemos perspectiva de muito apoio aos assentados, principalmente por parte das paróquias (católicas e evangélicas). Os assentados sonham com uma nova comunidade, diferente das tradicionais, mas as paróquias encaram as comunidades nos assentamentos como mais uma comunidade entre as demais. Os assentados reivindicam uma nova liturgia e celebração participativa que englobe a sua luta, um acompanhamento por parte da Igreja que ajude o processo revolucionário, mas a Igreja está emperrada no tradicionalismo, mesmo que fale em teologia de libertação. Urge elaborar uma nova liturgia, uma nova catequese, uma nova forma de ser comunidade e nisto a Igreja não está muito empenhada. Toda a experiência de luta dos assentados e acampados não está sendo levada em conta para se fazer uma nova comunidade. Aí se manifesta um problema: os trabalhadores estão mais adiantados na luta por libertação do que a Igreja (que só fala em libertação), e esta não tem estrutura e nem teologia para acompanhar o processo revolucionário (e, quem sabe, nem quer participar do processo revolucionário). A Igreja faz nos assentamentos o mesmo que nas comunidades tradicionais, com raras exceções. A Igreja (agora, os padres, pastores e irmãs) gosta de comprar grandes brigas, que dão publicidade e que também são necessárias, e grandes causas, mas no trabalho com os assentados e acampados, onde é necessário um trabalho miúdo, mas avançado, não há tempo por causa dos ofícios. Ou melhor, a arrecadação financeira da Igreja não permite que se dedique com mais cuidado aos sem-terra. Na paróquia é necessário batizar, enterrar, dar Santa Ceia, confirmar, fazer cultos e missas, pois isto garante a entrada de dinheiro e é, por isso, prioritário; e ficam nisto achando que assim estão construindo o Reino. Com isto se está impedindo um engajamento e a colocação de prioridade nos assentamentos. Não basta comprar as grandes brigas na defesa dos trabalhadores — briga verbal contra a UDR, contra os politiqueiros da burguesia, etc. — e não ter proposta de trabalho concreto onde é possível e onde se pede um ensaio na prática da nova comunidade, e deixar a comunidade assumir estas brigas.

Neste contexto participo do trabalho bíblico com os assentados.

Em todo o Estado existem três equipes ecumênicas que fazem o trabalho bíblico nos assentamentos; os participantes estão ligados ao CEBI. Os encontros bíblicos normalmente duram de um a três dias, geralmente dois. A esmagadora maioria dos assentados é católica, em menor proporção da Assembleia de Deus e um punhado pertence à IECLB (espalhados nos diversos assentamentos: uma família aqui, duas lá). O meu trabalho praticamente é com católicos. Fazem parte das equipes ecumênicas: padres, irmãs e pastores.

O estudo da Bíblia é feito para auxiliar na caminhada e na organização do assentamento. Ele surgiu, junto com a catequese e liturgia, quando os sem-terra avaliaram a sua luta e constataram que a luta política não avançou satisfatoriamente porque as questões de fé não estavam claras. Pediram então que a Igreja os auxiliasse na compreensão da fé, para que o processo revolucionário pudesse avançar mais.

O problema é que os assentamentos são 27, para os quais há somente três equipes. Estas só podem, portanto, fazer encontros a cada dois ou três meses. Pois os participantes têm paróquia, escola ou uma congregação onde são efetivos, tendo pouco tempo para o trabalho nos assentamentos. Os assentados escolhem as pessoas que participam dos encontros e o tema que com mais urgência precisa ser clareado. Os temas que mais aparecem são: organização e terra.

Em alguns lugares, antes de se estudar o tema solicitado, estudamos primeiro como ler a Bíblia e informações gerais sobre ela. Aí entra o estudo da Chave de Leitura Bíblica que dá uma visão de como a Bíblia quer ser lida. São dois dias de estudo, ou também somente um, conforme o tempo. Depois disto se pode estudar a questão da Terra, incluindo também o capitalismo e o socialismo. Após o desenvolvimento do estudo da Chave de Leitura, coloco brevemente o esquema do tema Organização e Terra, que pode ser estudado também com qualquer grupo.

II — Chave de Leitura Bíblica

1. Introdução

Este tema é ideal para estudar com pessoas que se iniciam na leitura da Bíblia, como assunto básico. Após este estudo deve-se necessariamente estudar os modos de produção. No meu entender, a base para a leitura da Bíblia é a Chave de Leitura e os modos de produção, desde o tribal até ao comunista. Só conseguimos ler e atualizar os textos bíblicos, se os lemos na ótica do credo que contém História e Fé. Por isso precisamos entender o nosso mundo compreendendo os modos de produção, fazendo análise de estrutura e conjuntura, e compreendendo e lendo a Bíblia, para podermos atuar eficazmente na construção do Reino de Deus. O problema da Igreja é que ela se diz entendida na Bíblia e não sabe fazer análise de conjuntura. Quem não sabe fazer análise de conjuntura e não entende o sistema econômico vigente não consegue ler corretamente a Bíblia. História e Fé não se separam. Como queremos, como cristãos, agir e fazer missão e participar na construção do Reino de Deus num mundo que não conhecemos?

A Bíblia é lida por muitas pessoas e em muitos lugares. Ela é lida e interpretada na Igreja, nos movimentos populares, na luta sindical e na luta dos partidos políticos. Até o Sarney diz que lê a Bíblia todo dia e pôs no Cruzado a frase: Deus seja louvado. A pergunta que nos vem é: De que ponto de vista a gente lê a Bíblia? O militante nos movimentos populares deve ler a Bíblia do mesmo ponto de vista do Sarney? E agora José? O trabalhador de salário mínimo, como ele vai ler e interpretar os textos bíblicos?

Quem diz como se deve ler a Bíblia? É a Igreja, o dogma, o trabalhador ou a classe dominante? Nenhum deles! A própria Bíblia diz como ela quer ser lida. Mas como vamos descobrir isto? Qual o texto que resume esta chave de interpretação? Os textos que são a chave de leitura da Bíblia são os que contêm a confissão de fé, tanto do povo de Israel como dos cristãos. O credo é um resumo do conteúdo da fé, ele diz o que é importante e decisivo. A função do credo é, exatamente, resumir, em poucas palavras, os conteúdos centrais da fé em Javé. Por ele, então, devemos nos guiar na leitura dos textos bíblicos.

Há vários textos que contêm um credo, tanto no AT como no NT. O credo do povo de Israel encontramos, entre outros, em Dt 6.21-23 e 26.5b-9 e o credo do NT, entre outros, em l Co 15.3-4. Para ler a Bíblia, usamos os óculos dos credos do AT e do NT, um completando o outro. Então vamos analisar os credos para ver o seu conflito central para que saibamos de que ponto de vista a Bíblia diz como ela quer ser lida e interpretada.

2. O credo do povo de Israel (Dt 6.21-23; 26.1-10)

O texto de Dt 6 é mais curto e o mais antigo. Ele é confessado no ambiente da família, do clã, que é a base política e econômica do modo de produção tribal por ser o credo do clã e ser claramente contra o Estado; ele legitima as leis feitas pelo povo (Dez Mandamentos de Dt 5). No v. 22 diz claramente que Javé fez sinais e maravilhas, grandes e terríveis, contra o Egito e contra o Faraó e toda a sua casa. Esta alusão direta ao Estado não encontramos em Dt 26.1-10, pois é um credo já composto no modo de produção tributário, pois é confessado durante a celebração da festa da colheita, e o intermediário que recebe a oferta é o sacerdote. É o credo do camponês, agricultor; aqui já temos uma sociedade de classes e este credo é confessado pela classe oprimida, ou seja, o camponês que vivia em confronto com o Estado (cidade). O texto, aqui, procura legitimar o tributo através do templo. Neste texto já vemos como se usa um elemento libertador para, através dele, legitimar a opressão do modo de produção tributário. A cesta é o tributo devido ao Estado e ao templo, é o elemento ideológico que encobre a exploração e a legitima. Mas, abstraindo o credo do seu contexto em que é falado, veremos que o conflito central, também aqui, é o Êxodo. Os dois textos deixam claro que os israelitas têm terra e são um povo e nação por causa do evento do Êxodo, no qual Deus tirou os trabalhadores escravos do Egito, onde imperava o modo de produção tributário ou asiástico, como alguns o chamam. O credo relata a história dos trabalhadores escravos com Deus, onde o central é a libertação por Deus da escravidão do Egito. O credo deixa claro a postura de Deus. Deus se posiciona e luta ao lado e pelos trabalhadores e não é favorável aos egípcios, que são os donos dos meios de produção e, consequentemente, do Estado. Javé não só luta em favor dos trabalhadores escravos como luta contra o Estado egípcio. Pois, se Javé se põe ao lado dos trabalhadores escravos, necessariamente tem que se colocar contra os egípcios que os exploram. Dt 26.7 diz: clamamos ao Deus de nossos pais; e os pais eram Abraão, Isaque e Jacó, que eram pastores que viviam longe da cidade-estado e viviam no modo de produção tribal. Sempre que tinham contato com a cidade (Estado), tiveram problemas. Eram trabalhadores livres que se tornaram pastores para fugir ao tributo das cidades-estado. Então Javé é o Deus dos oprimidos, dos pobres, dos trabalhadores e não dos opressores. Poderíamos dizer que Javé é o Deus que defende os princípios do modo de produção tribal e hoje defende os princípios do modo de produção comunista, pois ele retoma e evolui os princípios do modo de produção tribal: sociedade sem classes e sem Estado, todos são os donos dos meios de produção, a base da sociedade são os trabalhadores e suas leis, etc.?

Enfim, o credo é um relato histórico que mostra a postura de Deus na história das pessoas da classe trabalhadora na luta contra os dominadores. No credo temos história e fé, os dois são inseparáveis. Ele deixa claro que Deus não é neutro, mas parcial. Por isso a nossa leitura bíblica tem que ser parcial. Temos que usar a parcialidade de Deus, que é uma postura classista, na leitura e interpretação da Bíblia. Deus age a partir da situação da classe trabalhadora. Para os cristãos neutros e aliados e defensores do modo de produção capitalista estas afirmações doem muito, como também dói a postura classista de Deus.

Como o centro do credo do AT é o evento do Êxodo, então vamos nos aprofundar neste acontecimento para entender melhor a Deus e a sua ação e o próprio acontecimento do Êxodo. Para isto vamos ler Êx 3.1-22.

a) Êxodo 3.1-22

Após estas considerações sobre o credo do AT, passaremos a analisar cada versículo deste capítulo para aprofundar o acontecimento histórico do Êxodo e a respectiva ação de Deus. Tentaremos, com isto, descobrir as características de Deus que aparecem no texto. No fim teremos uma noção de como é este Deus, no qual nós cristãos cremos.

V. 1: As primeiras palavras que aparecem são: Moisés apascentava. Para entendermos as características de Deus neste v. vamos primeiro entender as características de Moisés. Moisés era trabalhador, livre, filho de escravos, pobre, peão, pastor, sem-terra, perseguido, exilado político e assassino. Estas características não o recomendam lá muito diante da classe dominante de então e de hoje, não era exatamente o que hoje normalmente se chama de um santo. Mas aí está uma das características de Deus, ele trabalha com pessoas que têm exatamente estas características, características de um trabalhador lascado que tem somente a sua força de trabalho para vender, para garantir a sua sobrevivência. E é exatamente isto que está fazendo quando Deus se revela a ele. Deus não se revela a Moisés no palácio do Faraó, onde ele foi educado e criado e de onde teve que fugir como rebelde porque quis libertar sozinho os trabalhadores da escravidão, acabando por matar um feitor egípcio, o que trouxe a perseguição de Faraó sobre ele; Moisés, no Egito, agiu como ensina a escola de Faraó: não o povo organizado é que se liberta, mas um super-herói faz isto; Moisés não era super-herói. Moisés havia atacado o sistema econômico e político egípcio e, com isto, ameaçado o próprio Faraó, expressão máxima do sistema econômico, político e religioso. Deas se revela a Moisés durante o trabalho; isto é importante, pois Deus não se revela a vagabundos que não trabalham. Não se revelou a Moisés quando no palácio e nem se revelou ao Faraó. Deus se revela a um trabalhador despojado dos meios de produção e durante o trabalho, no momento em que vendia a sua força de trabalho, no momento de sua exploração.

O local da revelação também é interessante. Deus não se revela a Moisés no Egito, e sim, na orla do deserto, ali onde os pastores levam seus rebanhos para pastar, ali onde vivem e trabalham os pastores. Em si é o lugar onde vivem os pastores, gente pobre da classe trabalhadora, mas livre da opressão do Estado. Moisés está perto do monte de Deus; a compreensão de um dos setores que formou mais tarde o povo de Israel era que Deus vivia neste monte. Era uma espécie de religiosidade popular. Sabemos que a fé não é algo pronto e acabado, mas que evolui. Dentro da evolução da fé de Israel estava esta compreensão de um Deus que vive num monte. É a compreensão de um Deus local que somente aparece neste local; é uma fé e compreensão de Deus bastante primitiva.

V. 2: Deus costuma revelar-se através de mensageiros, anjos, e através da natureza: sarça e fogo. O fogo aparece também no Monte Sinai e no dia de Pentecostes como forma de revelação de Deus.

V. 3: Chama a atenção quando Deus se revela. Talvez achemos que, aqui, Deus até se revele em coisas anormais como fogo que não consome, assim como também é anormal para o sistema opressor Deus se revelar a trabalhadores escravos e não ao Faraó que era a instância legítima do sistema. Sempre chama a atenção quando Deus se revela; normalmente a nossa ideologia não nos deixa ver esta revelação, ou seja, não a queremos ver para não nos comprometer.

V. 4: Aqui aparece um Deus que vê e fala, não é cego nem mudo como as estátuas dos deuses egípcios. Deus percebe a disposição e curiosidade de Moisés (e a nossa) e o chama pelo nome. Se chama pelo nome é porque o conhece e quer iniciar um diálogo. E um Deus que dialoga com as pessoas, é um Deus pessoal que é a segunda compreen¬são da evolução da fé do povo de Israel.

V. 5: Aqui continua o diálogo entre Moisés e Deus. Tirar as sandálias em terra santa é a exigência de respeito a Deus em sua terra. Que lugar é este para ser santo? Uma vez, ê no monte de Deus que fica no local das pastagens onde vivem e trabalham os pastores. Terra santa é o lugar onde vivem os trabalhadores marginalizados e explorados.

V. 6: Num mundo cheio de deuses opressores é necessário que Javé se apresente; ele se apresenta como o Deus dos pais — Abraão, Isaque e Jacó — pastores como Moisés. Com isto, Deus está dizendo que ele não é um Deus egípcio, mas é um Deus que já tem história com os pastores. Na ação com os antepassados, Deus se faz entender por Moisés. Javé é um Deus migrante e pessoal que acompanha os pastores migrantes na sua fuga da exploração e luta pela sobrevivência. A profissão pastor não foi uma escolha ou um dom desenvolvido, e sim, foi uma forma de fugir e resistir às cidades-estado e seu tributo. Esta categoria social, pertencente à classe trabalhadora, Deus acompanhou e apoiou em seu projeto de um dia conseguir ser donos dos meios de produção que é a terra. Eram ex-lavradores fugitivos das cidades-estado, vivendo nas estepes de forma migrante e, com isto, impossibilitando ao Estado a cobrança do tributo. Eram livres, mas o preço da liberdade foi a pobreza.

Moisés esconde o rosto, dentro da compreensão de que a santidade de Deus não podemos fitar e porque diante de DEUS nos lembramos dos pecados cometidos, como uma criança pequena que, quando fez arte, não consegue fitar os pais por causa da consciência suja. Entre outras, Moisés tentou brigar sozinho contra o Faraó, fez besteira e foi obrigado a matar.

V. 7: Aqui aparece claramente que Javé vê a aflição de seu povo, os trabalhadores escravos no Egito. O texto diz: meu povo no Egito, pois o povo de Deus está espalhado em todo o mundo; onde há trabalhadores explorados há povo de Deus. Não é um Deus cego diante do sofrimento e da exploração; ele toma partido. Ele ouve o grito de dor (opressão e fome) causado pelos capatazes do sistema. Deus conhece o sofrimento, pois está naquele que sofre (Mt 25). É um Deus que conhece o sistema opressor econômico, político, social e ideológico. Javé diz claramente que vê, ouve e conhece o sofrimento da classe trabalhadora, em contraposição à religião egípcia com seus deuses legitimadores da opressão.

Aqui Deus diz meu povo e, com isto, identifica os trabalhadores escravos como integrantes de seu povo, mais ainda, os trabalhadores são o povo de Deus. Aqui Deus reconhece a sua parcialidade e a sua posição em favor da classe trabalhadora. Se é um Deus de escravos, não pode ser, ao mesmo tempo, um deus de senhores de escravos. E o deus dos senhores não pode ser o Deus dos escravos. O deus do Sarney não é o Deus do Jair Meneguelli. O texto diz que Deus ouviu o clamor dos trabalhadores por causa da opressão dos senhores. Se estes tivessem Javé como seu Deus, não oprimiriam ninguém e deixariam de ser senhores. Deus ainda identifica os causadores diretos da opressão: os exatores, que estão a mando dos senhores egípcios.

V. 8: Aqui começa a intervenção direta de Deus na história: desci para livrá-los das mãos dos egípcios. Um Deus que não está nos céus, mas se encarna na luta da classe trabalhadora sofredora para libertá-la, ele entra na vida dos trabalhadores massacrados pela opressão político-econômico-religiosa. Javé não vai livrar a classe trabalhadora por livrá-la, mas vai fazê-la subir da terra; ele tem um projeto para ela. Vai viabilizar a conquista dos meios de produção — a terra — e, com isto, possibilita a formação de um novo modo de produção elaborado pela classe trabalhadora, o que realmente aconteceu. Para que os trabalhadores escravos possam ter uma vida digna, é necessário que saiam desta opressão e conquistem os meios de produção para que eles possam decidir sobre o que produzir, como e para quem produzir e fazer as suas leis; enfim, para que eles dirijam a sua própria classe. Javé promete uma terra, onde há alimento e que produz. Vai produzir alimentos, para que os próprios produtores fiquem com eles.

O texto diz: para fazê-lo subir. Javé não vai dar a terra de mão beijada. Javé vai guiar os trabalhadores escravos na conquista desta terra. Javé não ilude, mas adverte que a terra atualmente tem dono — as cidades-estado dominam sobre ela. Os trabalhadores escravos despojarão os reis cananeus com a ajuda e ordem de Deus. Deus manda acabar com o sistema das cidades-estado da Palestina, que reproduzem o mesmo sistema econômico do Egito, que por sua vez sobre elas domina. Não basta sair apenas do Egito, a opressão da classe trabalhadora é universal, por isso os trabalhadores têm que conquistar o seu espaço onde eles têm força para tanto. Lutar contra os egípcios? Não há força para tanto! Então o negócio é lutar contra quem se pode lutar e vencer, é questão de estratégia. O que os trabalhadores escravos fizeram na Palestina foi criar regiões libertadas, onde valia outro modo de produção e outras leis, e onde os trabalhadores governam.

Sabemos que a libertação da escravidão do Egito foi uma entre muitas; mas, como foram eles que enfrentaram o imperialismo egípcio de frente, os outros grupos de camponeses que se libertaram das cidades-estado da Palestina, em lutas menores, assumiram a saída do Egito como sendo também sua. No fundo, a luta é a mesma, como o inimigo também é o mesmo. As cidades-estado eram apenas fantoches em mãos e interesses egípcios, eram a extensão do Egito. Lutando contra elas, no fundo, se lutava contra o Egito. Pois o relato de Êx 3, como todos os outros, é feito sob os olhos da fé. '

V. 9: Novamente é acentuado que o clamor dos trabalhadores escravos chegou a Javé. Algo totalmente impossível dentro do sistema religioso egípcio, onde os sacerdotes e o Faraó (como filho de deus ou próprio deus) eram os intermediários. A estrutura religiosa do Egito era cópia da estrutura econômico-política: na ponta, o Faraó, abaixo, os sacerdotes (como integrantes do aparelho ideológico do Estado) e os príncipes e exército (como aparelho repressivo do Estado), e abaixo, os camponeses livres e os escravos que formavam a classe trabalhadora. Através desta pirâmide de intermediários o clamor do povo trabalhador nem chega ao Faraó. A estrutura apresentada e usada por Javé é a inversa da egípcia, (onde os deuses se revelam primeiro ao Faraó e aos sacerdotes e estes repassam os desejos opressores dos deuses aos trabalhadores, o que nada mais é do que manter o modo de produção intacto). Javé, no entanto, se revela primeiro aos da base da pirâmide, os trabalhadores escravos, pois é um Deus dos trabalhadores e não de opressores. A simples forma de Javé se revelar já invalida e subverte a estrutura religiosa que dá sustentação à estrutura econômica e política. Invalidando a estrutura religiosa, automaticamente invalida a estrutura econômica e política, pois não há separação entre as três. O Faraó é deus (religão) e é rei (político-econômico).

O v. 9 diz: Vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Para Javé, a ação dos egípcios é opressão, para os deuses egípcios isto é algo normal e correto. Como acontece a opressão? De que opressão se fala aqui? Aqui se fala da opressão econômica, que é a base de todas as opressões, e ela acontece nas relações de trabalho. Os trabalhadores escravos não possuem os meios de produção nem possuem a si mesmos (instrumentos de trabalho). O que eles possuíam, a sua força de trabalho, estava sendo aprisionada e usada. A estrutura econômica egípcia se baseava no tributo e no trabalho escravo. Sem os escravos faltaria uma das bases da produção, o que seria um golpe para o Estado. Toda a estrutura econômica estava vinculada com a estrutura religiosa que dava a sustentação ideológica ao sistema todo. A religião funciona como ideologia, pois tem a função de encobrir a exploração.

Javé como Deus da classe trabalhadora, legitimando a revolta e fuga, ameaça não só a estrutura religiosa, mas também a estrutura econômica e política. Esta situação era semelhante à do Brasil hoje, onde o modo de produção capitalista está tendo (mesmo que não oficialmente) uma boa sustentação ideológica pelo cristianismo, em sua maioria com ele comprometido. Assim a fé vira ideologia! A opressão de pessoas e da classe trabalhadora sempre se dá, principalmente, pela economia, por isto a libertação se dá com o rompimento com esta economia e a construção de um novo sistema econômico pelos trabalhadores oprimidos. A opressão econômica é a base da exploração, as outras opressões são variantes da mesma para complementá-la e fortificá-la. Os outros capítulos do Êxodo explicam como se deu esta luta entre opressão e libertação no campo econômico: aumento da jornada de trabalho, aumento do ritmo de trabalho e de produtividade, pragas, etc.

V. 10: Vem, agora eu te enviarei é a fórmula profética: chamado e envio. Quem, aqui, toma a iniciativa para subverter a ordem vigente e constituída é Deus; ele não só toma a iniciativa, mas diz também o que deve ser feito e comanda a operação da saída do Egito. Deus desencadeia a luta aberta contra o regime político e o sistema econômico do Egito. Não adianta brigar com exatores que são subordinados, deve-se ir direto ao centro do poder, ao representante máximo do país que é o Faraó. Não ir ao Faraó pedir concessões ou diminuição da opressão, mas acabar com a exploração sobre a classe trabalhadora.

O processo revolucionário sempre começa com um pedido que não é atendido. A partir de vários pedidos não atendidos o processo revolucionário se radicaliza (cresce com a luta e na consciência), pois os opressores nunca escutam um mero pedido, só atendem e fazem concessões (algumas), para ganhar tempo, ou quando não têm mais força para resistir e são obrigados a entregar o poder.

A missão de Moisés é tirar o meu povo, os filhos de Israel do Egito. Aqui Javé diz que os trabalhadores escravos são o povo dele; com isto está dito bem claro que os egípcios opressores não fazem parte do povo de Deus. Duro, né! Que o digam os capitalistas cristãos! Isto termina com o sonho dos setores do cristianismo que estão muito preocupados na salvação dos ricos e opressores, quer dizer capitalistas, e pensam que isto pode acontecer, mesmo eles continuando a ser o que são: exploradores da classe trabalhadora. Aqui diz bem claro: eles não são parte integrante do povo de Deus. Estes setores do cristianismo crêem ingenuamente que com a conversão dos ricos podem conseguir concessões para os trabalhadores. Deus diz aqui: nada de concessões; para aliviar a opressão, o negócio é libertação total, fim da opressão. Além do mais, a solução da classe trabalhadora não vem dos capitalistas, mas da própria classe trabalhadora. A solução não veio do Faraó, mas, sim, do engajamento na luta dos próprios escravos comandados por Deus.

Aqui Deus manda se rebelar contra o Estado. Onde fica a submissão irrestrita ao Estado fomentada por muitos cristãos? Muitos dizem: A gente não pode ser contra o governo. Ap 13 diz que o poder do Estado Romano vem do diabo, como todo o Estado governado por uma elite opressora, que por causa disto deve ser combatido, o que diz também o v. 19 de Êx 3. O v. 10 deixa claro que a gente tem que dizer quem é o nosso opressor, sem tentar simular, com palavras agradáveis, perante os seus representantes. Pois aqui Deus manda fazer a revolução, ele a comanda e a inicia.

V. 11: Moisés não entendeu que na fraqueza está a força (l Co 1.18-29). Quando não se entende isto, vem a grande resignação: não podemos fazer nada! O sistema faz questão de acentuar isto, ele sempre se mostra unido, forte e invencível; tudo concorre para que seja assim, principalmente as leis. No Brasil o Ministro do Exército sempre diz: As Forças Armadas estão unidas!

No diálogo com ele, Deus permite que duvidemos de nossa capacidade e de nossa força. Os pequenos agricultores também sempre dizem: Nós é que pagamos o pato e não adianta fazer greve, pois alguns sempre furam a greve. A gente pensa assim mais na fraqueza. Mas, nos fracos é que está a força. Se assim não fosse, os opressores não usariam tanto o exército e a polícia contra os fracos (trabalhadores). Os opresssores sabem que força os fracos têm: eles não nos subestimam; pôr isso reagem rápido com baionetas e tanques, na repressão, para manter a ordem estabelecida (por efes mesmos).

V. 12: Diante da vacilação de Moisés, Deus lhe garante que nesta luta ele não estará sozinho. Javé não abandona seu povo na luta. O sinal de que Deus está com o seu povo será a vitória. No desenrolar da luta, a gente, às vezes, perde a noção das coisas, e até para onde se vai; mas, depois, olhando para trás, se vê claramente cada passo. A vitória vai fazer com que os trabalhadores escravos adorem a Javé, pois aí não haverá mais dúvidas.

V. 13: Neste diálogo nos confrontamos com um Deus que admite intimidade. Ele permite a gente duvidar e também pedir, para que ele se identifique dizendo seu nome. Pois, no meio de tantos deuses opressores, mais um deles não seria novidade. Para que se possa ter confiança nesse Deus e ver se ele é um deus egípcio que apoia a opressão, precisa-se saber quem ele é. O povo precisa saber quem luta com ele. É um Deus do qual se pode pedir orientações. Mesmo que Moisés diga que o Deus dos nossos pais me enviou, isto não basta, pois a exploração acaba também com a memória dos trabalhadores; não só com a memória, mas também com a cultura; visa também acabar com a fé num Deus libertador.

V. 14: O meu nome é: Eu sou o que sou. Afinal, eu sou o quê? Para se conhecer alguém, a gente normalmente se baseia no seu comportamento, o que ele faz. Qual o comportamento de Deus? O que ele faz? O que ele faz nós já vimos no texto até aqui: ele comanda o processo de libertação e ajuda a construir uma nova sociedade com um novo regime político e um outro sistema econômico para que haja vida e igualdade. Nós conhecemos Deus através de sua ação. Esta ação já inicia com os patriarcas. Os deuses egípcios tinham um nome. O Deus da classe trabalhadora é o que ele faz. Conforme João, o verbo se fez carne. Em Gênesis: haja luz e houve luz. Palavra e ação para Javé não se separam. Não é um Deus espiritual, mas um Deus que se fez carne, se fez história. Não é uma estátua imóvel, Javé é movimento de transformação, anda com os trabalhadores, se encarnou neles; é ação a favor dos oprimidos. Na segunda parte do v. aparece uma parte da fórmula profética: assim dirás ao. . . Deus chama, envia, manda dizer.

V. 15: Aqui continua a mensagem que Javé manda dizer. Moisés deve apresentar Javé aos trabalhadores escravos, evocando a ação de Javé no passado em favor dos patriarcas. Isto para mostrar ao povo escravo que Javé já tem história com seus antepassados e que ele não é um deus egípcio. Moisés é o enviado de Javé, ele é instrumento seu, para encaminhar a libertação.

O nome de Javé será lembrado sempre, como aquele que é um Deus da classe trabalhadora, e que luta contra o Estado opressor que dá sustentação a um modo de produção igualmente opressor. Eternamente Javé será lembrado assim. Javé nunca será um Deus aliado ao sistema opressor; e usar o seu nome em vão (2º. mandamento) é, quando os opressores fazem de conta como se fossem seus seguidores, para poderem se manter no poder. Vide o dizer no Cruzado, e o Sarney usando sempre em cada discurso à nação o nome de Deus. Por que o Sarney faz isto? Porque para ele o cristianismo faz parte do aparelho ideológico do Estado, para ele fé é ideologia que se usa, para dar legitimidade ao seu governo elitista. Mas Javé sempre será lembrado como aquele que age em favor da classe trabalhadora.

V. 16: Javé se apresenta a Moisés como Deus dos pais. Moisés deve dizer isto ao povo e também aos anciãos, e cada um deve repetir isto para identificar quem Javé é. E serve para reafirmar, uma espécie de propaganda que se repete sempre de novo, para ficar bem claro.

Com a ordem de ajuntar os anciãos, Javé corrige Moisés pelo fato de ele, no passado, ter querido fazer as coisas sozinho, enfrentando o sistema sozinho e matando o capataz. Javé manda Moisés com os anciãos, não ao capataz, mas ao Faraó. Javé inicia dando a primeira lição, que é a organização. Sem organização não se consegue lutar. Manda usar a organização dos escravos, que são os anciãos. É a valorização da organização dos trabalhadores, que ainda tinham a organização baseada no modo de produção tribal, onde os anciãos são os líderes, e onde o clã é a base da sociedade. Ajuntar os anciãos e a partir deles organizar a resistência ao sistema é a ordem de Javé. Deus tem visitado e visto o sofrimento dos trabalhadores escravos. Um Deus que visita escravos e vê a sua situação não pode ser um Deus do sistema vigente e nem pode legitimar o sistema; só pode ser um Deus dos trabalhadores escravos.

V. 17: Aqui Moisés deve repetir aos anciãos o que Deus lhe disse: a promessa da saída da escravidão e a promessa da terra, onde há comida em abundância. Praticamente repete o v. 6.

V. 18: Aqui o Faraó fica sabendo da existência de Javé, o Deus dos trabalhadores. Aqui se inicia a luta dos deuses: Javé contra o deus Faraó e todos os deuses egípcios que legitimam a opressão. Se hoje o cristianismo legitima a opressão e a exploração da classe trabalhadora, então isto não é cristianismo, mas sim, idolatria. Se a igreja cristã tem realmente Javé como seu Deus, então nunca poderá apoiar e legitimar a exploração do homem pelo homem.

Deus dá certeza a Moisés de que os anciãos o ouvirão, pois também eles clamaram a Javé, e a proposta que Moisés traz é o que eles desejam: serem libertos. Além do mais, Moisés está valorizando-os, dirigindo-se a eles, que são os representantes dos trabalhadores escravos. Isto mostra que a libertação não vem através de um super-homem — Moisés —, mas da organização dos trabalhadores dirigidos por Javé.

Moisés irá com os anciãos ao Faraó e não sozinho, isto é importante. A mensagem deles soará bem subversiva aos ouvidos do Faraó. Em primeiro lugar Faraó nunca aceitará um pedido de um Deus de escravos porque ele, Faraó, é deus. Depois, quem é este Deus que não se enquadra no sistema egípcio? No Egito os deuses se revelam, em primeiro lugar, ao Faraó e não aos escravos. Quando Javé diz que encontrou os hebreus, então isto é correto, pois o povo estava tão massacrado pela opressão e pela ideologia religiosa egípcia que havia esquecido o Deus dos pais, havia perdido a identidade de povo de Deus. O objetivo da opressão é aniquilar toda identidade no trabalhador, para que pense e aja como a opressão manda e assuma a ideologia da classe dominante, e assim seja um bom servo. Os israelitas também já haviam se desviado de Javé e servido a outros deuses; por isso tiveram que fazer uma aliança com Javé, comprometendo-se com ele. A saída da escravidão só acontece quando Israel realmente adota Javé como único Deus, rejeitando assim os deuses egípcios que legitimam a opressão.

O pedido de ir adorar a Javé, o Deus da classe trabalhadora, no deserto por três dias, é dizer que não se consegue realmente adorar a Javé dentro da opressão e é o não-reconhecimento, por parte dos trabalhadores, dos deuses egípcios. Ao mesmo tempo em que não reconhecem os deuses egípcios também estão exercitando a sublevação política, pois a política e a religião, no Egito, não se separam. Faraó é filho de deus e, ao mesmo tempo, é rei; e o reinado vem da legitimidade religiosa. Não reconhecendo a religião que legitima o rei, não se reconhece o rei.

O texto fala expressamente o Deus dos hebreus; e hebreus — hapiru — são os trabalhadores braçais desde o Egito até a Mesopotâmia, escravos, livres ou mercenários. Aqui Javé se identifica expressamente com o Deus desta classe social, os trabalhadores. Esta é a universa¬lidade de Javé.
Aqui acontece uma ruptura: a fé não se deixa determinar pelo sistema econômico, por isso a saída de três dias para reafirmar esta ruptura e nunca mais voltar. Deve ter sido muito difícil para estes trabalhadores escravos conseguir romper e superar o determinismo do sistema econômico sobre a f é ou a religião. A coisa é muito difícil de se entender e romper, pois o sistema econômico procura determinar a nossa compreensão de Deus. Também hoje a fé dos cristãos não é determinada pelo Evangelho de Jesus Cristo, mas pelo sistema econômico capitalista. O sistema capitalista procura determinar a nossa compreensão de Deus e de fé, por isso os cristãos legitimam o capitalismo, pois adaptaram a fé ao sistema econômico e não o contrário; senão já teriam rompido com o sistema econômico; mas até agora o defendem. Fé que se deixa determinar por um sistema econômico não é fé, e sim, é ideologia. Fé sempre é resistência à opressão e nunca é acomodação à situação opressiva. Na saída do Egito aconteceram duas coisas: a ruptura com o sistema econômico e a ruptura da fé com o sistema, o que se dá simultaneamente. Rompendo com o sistema econômico e regime político egípcio, se rompe automaticamente com a religião do Egito, pois ali não existe a separação, como hoje, de Igreja e Estado. Hoje, com esta separação legal (mas não de fato), não se enxerga esta vinculação da fé ao sistema, e normalmente a gente não admite esta determinação da fé pelo modo de produção. Por isso não basta apenas a conversão individual; é necessária a conversão coletiva da sociedade — a revolução; com ela se quebra todo o velho, e começa o novo da frente. O que no fundo quero dizer é que, se a fé se deixa determinar pelo modo de produção, então não é fé em Javé.

O v. diz que os trabalhadores escravos querem sair três dias para sacrificar a seu Deus. A tática é sair, para não voltar. Na luta a gente deve ser ágil, vivo frente ao inimigo; quem manda enganar o inimigo é Javé.

V. 19: Javé já prevê a reação do Faraó, pois ele conhece o opressor; ninguém se deve iludir com a bondade do opressor e a sua boa disposição em atender os interesses dos trabalhadores. Nesta disputa não existem concessões, vence o mais forte. Se o opressor faz concessões, então é porque tais o favorecem. Javé aqui não pede concessões, ele pede tudo, Uberdade total. Deus sabe que só no jogo de forças se consegue a uberdade. A força é uma luta organizada onde todos os trabalhadores têm a teologia de Javé na cabeça. Se tiver alguns que ainda têm a teologia dos deuses egípcios na cabeça, então estes automaticamente trabalharão contra os interesses de sua classe. Com o pedido de saída, Javé atinge o ponto central de toda a opressão que é o lucro. Escravos param de trabalhar; isto significa menos lucro ou lucro nenhum; não há produção e trabalho enquanto isto. Não tendo produção, não há mercadorias e não tendo mercadorias, não há lucro. Não tendo mercadorias, não se pode trocá-las e, assim, não há lucro. Por isso Javé inicia o processo de luta contra o Egito pela economia, parando a produção para poder organizar os escravos numa celebração de três dias. O chefe deste processo de libertação é Javé, dele vem a motivação.

Javé alerta, para deixar claro, que a luta será dura e para não subestimar o opressor. Por isso diz que o Faraó só cederá, quando for vencido por uma força superior à dele. Aqui se usa o termo: se não for obrigado. Javé vê a impossibilidade da conversão do Faraó, pois ele não se converterá a um Deus dos trabalhadores. Efe está tão comprometido com a opressão, que não tem conversão para ele; ele serve conscientemente a outros deuses. Deus também nem pede ao Faraó que se converta, ele apenas pede que deixe os trabalhadores escravos saírem. A mão forte é a pressão exercida pelas pragas que acabam com a economia do Egito (Êx 7-12). A opressão tem, n a base, a economia; assim também a libertação tem, na base, a economia; tudo passa pelo processo econômico.

Por isso Javé dá terra aos trabalhadores escravos, pois a terra é o meio de produção nas mãos da classe trabalhadora, para que possam mandar e decidir sobre a economia; e somente haverá liberdade, quando os trabalhadores determinarem a economia, sendo donos dos meios de produção; é isto que Javé encaminha aqui.

V. 20: Deus vai ferir o opressor no único lugar sensível, a economia. A mão estendida na luta são os trabalhadores escravos, organizados sob a fé num único Deus. Os trabalhadores escravos aqui são instrumento de Deus. Aqui se fala do Egito e não do Faraó. Este é apenas o representante supremo da opressão, por isso não adianta trocá-lo, é necessário liquidar todo o sistema. (Não adianta trocar o Figueiredo pelo Sarney, nós já vimos no que deu, o sistema continua, e a Nova República é boa prova disto.) Javé deixa claro que só após a derrota total do sistema é que haverá libertação total.

V. 21: Aqui Javé se coloca junto ao marginalizado e com isto, mostra de quem ele é Deus. Com isto Javé mostra que ele não é o mesmo frente ao opressor e ao oprimido. A atitude diante dos dois é diversa. Deus não é Deus de todos, e nem todos têm o mesmo Deus. Frente os opressores Javé age com a sua mão forte e frente aos oprimidos mostra mercê. Deus não é neutro; ele toma partido de uma classe social, porque é o Deus desta classe social.

Javé garante que os trabalhadores escravos não sairão de mãos vazias. Os escravos receberão, além da liberdade, aquilo que mereceram durante os anos de trabalho escravo: o lucro (as mercadorias) que produziram e não receberam (Lc 1.46-56).

V. 22: Aqui aparece a participação da mulher na luta de libertação, como já apareceu em Êx 2-3. Aliás, foram as mulheres que iniciaram o processo de resistência e de luta contra o Faraó. As mulheres foram pedir as riquezas dos egípcios. O pedir aqui é tomar aquilo que, na verdade, elas e os homens produziram com o seu trabalho e não receberam. É a requisição das riquezas acumuladas pelos opressores através do trabalho dos escravos. Somente após uma vitória total sobre os opressores os trabalhadores terão condições de fazer uma justa distribuição da riqueza. Os filhos irão ser os grandes beneficiados da libertação; é uma vitória que permanecerá no futuro. Não só os atuais trabalhadores escravos terão benefícios, mas estes se estenderão às futuras gerações. Quando Javé diz: Despojareis os egípcios, então este repartir é sinal do início da sociedade igualitária que está surgindo com a libertação. O opressor perderá a sua riqueza, porque na verdade não é sua, pois é roubada; foi acumulada pelo trabalho não pago aos trabalhadores. Esta riqueza será um bem comum de todos os trabalhadores. Na verdade aqui não se pode falar de saque, porque as mercadorias existentes no Egito foram produzidas pelos escravos, portanto são deles. O saque aconteceu antes da libertação, quando os egípcios saquearam o produto do trabalho dos trabalhadores escravos. Assim como hoje os capitalistas saqueiam as mercadorias produzidas pelos trabalhadores e só lhes pagam o suficiente para que continuem vegetando, para se reproduzirem e gerarem novos trabalhadores, que serão novamente explorados pelos mesmos patrões.

b) Evolução da compreensão de Javé em Êx 3

1°) Nos vv. 1-2, Javé aparece no monte Horebe. Compreende-se que Deus ali habita. Um Deus local. Javé aparece, também se manifestando na sarça e no fogo. Um Deus da natureza. É uma forma de religiosidade popular.

2º.) No v. 4, Javé chama Moisés pelo nome. Se o chama pelo nome é porque conhece a pessoa. É um Deus pessoal, que se importa com a pessoa e está onde a pessoa está.

3° No v. 6, Javé se identifica com o Deus de Abraão, Isaque e Jacó — o Deus dos pais. É a compreensão de um Deus migrante, que anda com os pastores migrantes. É um Deus do clã, identificado com o modo de produção tribal.

4°) No v. 18, Javé se identifica com o Deus dos hebreus. Os hapiru são uma classe social no Antigo Oriente, são a classe trabalhadora. Javé se revela a Moisés, um trabalhador, durante o trabalho; Javé é um Deus da classe trabalhadora. Aqui está a universalidade de Javé; um Deus de todos os trabalhadores, não importando o local ou país, a raça ou o sexo.

c) Círculo da tradição do Êxodo

Quem repassou este evento do Êxodo às gerações posteriores? Certamente não foi o pessoal da corte, do Estado. Se olharmos os três capítulos iniciais do Êxodo, veremos várias pessoas que participaram da luta de libertação. Certamente foram estas que estavam interessadas em passar adiante o relato do Êxodo. Olhando para estas pessoas veremos que são todas da classe trabalhadora:

Mulheres (1.15-22; 3.22), anciãos (3.16), família (2.1-10), agricultores (1.14), operários (1.11,14), profetas (3.10,14-15), pastores (3.1), sem-terra (3.8), peões (3.1), escravos (1.3), crianças (1.15-2.10), exilados (2.22), pobres (1.12).

d) O credo do AT como primeiro passo.

Ficando apenas no credo do povo de Israel, não teremos uma visão total de Deus. A libertação aqui descrita é o início, apenas o primeiro passo. Aqui acontece a libertação da morte em vida. E quem participa desta luta por libertação da morte para a vida, certamente participará da conclusão desta libertação feita por Jesus Cristo na ressurreição, que é o segundo passo. Não basta sermos livres nesta vida, se iremos morrer. Mas, como Javé é o Deus da vida, ele não só quer que vivamos plenamente aqui neste mundo, mas quer que também vivamos após a morte. Aí a libertação será total e completa. Por isto, o credo cristão completa o credo do povo de Israel. Se ele completa, então ele mantém dentro de si a essência do outro. Nunca podemos ver a mensagem central de Jesus Cristo sobre o Reino de Deus desvinculada dos acontecimentos do AT. A ressurreição, que é o central do credo cristão, é o ponto alto do Reino de Deus. É o Reino em seu estado completo e pleno. A participação no Reino, portanto, inicia com a luta de libertação da opressão e morte em vida, e se completa pela libertação da opressão da morte, que é a libertação da própria morte. Lembrando que Jesus Cristo, na Páscoa, faz a ligação do AT com o NT. O acontecimento da Páscoa centraliza os acontecimentos do Êxodo e da cruz/ressurreição. Portanto, a Chave de Leitura Bíblica é: êxodo — cruz/ressurreição.

Assim, ao lermos o AT, o fazemos na ótica do êxodo, sabendo que Javé é o Deus da classe trabalhadora e sempre agirá em favor desta; e é a ela e seus aliados que Deus usa para construir o seu Reino. Agora vamos estudar o segundo passo do projeto de Deus a partir do credo cristão e ver o acontecimento central deste, e quem Javé usa como instrumento no NT.

3. O credo cristão (l Co 15.3-4)

Paulo foi o primeiro a escrever algo sobre a mensagem do Reino de Deus às comunidades. Ele coloca dentro de suas cartas partes da liturgia, cantos e credos da comunidade primitiva. Um destes credos está em l Co 15. Neste credo está, de forma bem resumida, a motivação que Paulo revela para ir mundo afora pregar e praticar a mensagem do Reino. A sua motivação está baseada no fato de que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia. O que existe de revolucionário neste credo? Sem dúvida, é o fato da morte e da ressurreição. A ressurreição de Jesus Cristo foi a motivadora da criação de todas as comunidades e foi a motivadora de se levar a mensagem do Reino de Deus a todo o mundo. O conflito central do credo cristão é a cruz/ressurreição.

a) A cruz imposta (Mc 15.33-41)

O conflito central da confissão de fé dos cristãos é a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Vamos ver como aconteceu a morte de Jesus. O credo diz que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, o que é o sinal da grande graça de Deus para com as pessoas. Seria interessante fazer uma lista dos pecados individuais e coletivos, ocultos e visíveis, das pessoas; a partir daí dá para entender um pouco melhor a graça de Deus.

Mas, analisando a morte de Jesus Cristo, usaremos o texto de Mc 15.33-41 onde aparecem três acontecimentos importantes. Estes acontecimentos surgem após a morte de Jesus Cristo, melhor dito, ao lado da cruz após a morte de Jesus Cristo. Nestes três acontecimentos veremos a mudança que ocorreu com a morte de Jesus e as propostas inerentes a esta mudança. A morte de Jesus é um divisor de águas, a partir daí surge o novo.

a.a) O véu rasgado

A primeira coisa que aconteceu após a morte de Jesus Cristo foi o rasgar do véu do templo. O véu estava na entrada do santo dos santos, compartimento onde o sumo sacerdote entrava somente uma vez ao ano, e só ele. Dizia-se que Javé ali residia. Com o véu rasgado fica claro que não dá para prender Deus num quarto fechado e a partir daí usá-lo para os interesses da classe dominante, usá-lo para legitimar a opressão. Com o rasgar do véu, o templo de Jerusalém perde o seu sentido, pois Deus não mora mais lá dentro. Deus rompe com o sistema centrado no templo, que ajudava a legitimar a opressão romana e o seu modo de produção. O templo garantia o tributo romano e do próprio templo e uma interpretação da lei que favorecia a elite. Foi este mesmo templo que provocou a crucificação de Jesus Cristo, que foi preso pelos guardas do templo e levado frente ao governo imperial. O Filho de Deus e com isso o próprio Deus, era uma ameaça ao templo dedicado a ele. Meio contraditório, mas foi assim. Deus é uma ameaça para o seu próprio templo! Por quê? Porque o pessoal do templo e seus aliados transformaram a fé em ideologia, que dava sustentação ao modo de produção vigente e ao Império Romano. Se repete o mesmo esquema que a religião tinha no Egito (e que boa parte do cristianismo tem hoje).

Acontece que o templo de Jerusalém significava ao mesmo tempo:

1) Controle ideológico — Era o símbolo religioso usado como ideologia religiosa que mantinha a interpretação da lei, a própria lei, o sistema de pureza e a centralização religiosa do povo. Jesus Cristo foi contra o uso ideológico do templo, a interpretação da lei, o sistema de pureza e a centralização que o templo exercia. Jesus pregava e vivia a verdadeira fé, e não propagou ideologia religiosa mantenedora da opressão; interpretava a lei de forma diversa do templo, fazendo com que a lei estivesse a serviço das pessoas e não vice-versa; ele poucas vezes pregou no templo, pregava onde vivia, no meio da classe trabalhadora, aliás ele era filho de trabalhador. Deus se tornou carne através de uma mulher trabalhadora, encarnando na classe trabalhadora, foi um trabalhador que viveu no meio dos trabalhadores oprimidos da Galiléia, reduto latifundiário de Israel. Pregando e vivendo no meio da classe trabalhadora, Jesus Cristo mostra que não é o templo que é importante, mas as pessoas o são. Descentralizou a pregação (era feita no meio da classe trabalhadora), e não incentivou os sacrifícios que legitimavam o tributo.

2) Controle econômico — Através do templo se legitimava o modo de produção vigente. O tributo recolhido pelo templo legitimava também o tributo recolhido pelos romanos. O sumo sacerdote era esco¬lhido pelos romanos, que assim lhes assegurava a continuidade do reco¬lhimento do tributo e de todo o sistema repressivo romano. Jerusalém vivia do templo, principalmente o comércio. Ameaçar o templo é ameaçar a economia da cidade e as finanças da classe dominante. O comércio no templo era privilégio da família do sumo sacerdote: o câmbio e a venda de animais para o sacrifício. Lucro triplo: não se podia trazer o animal de casa, tinha que se comprá-lo no templo, mas não com o dinheiro corrente que era impuro, tinha que se trocá-lo pela moeda cunhada pelo próprio templo e, por fim, a metade do animal sacrificado (ovelha, pombo ou boi) ficava para o templo. Assim se lucra com o câmbio, com a venda do animal e com a metade da carne que fica para o templo. E todos os rituais de perdão, purificação e agradecimento exigiam sacrifício. O batismo com água do Jordão de João Batista é pura subversão à economia do templo. Assim, o templo era o coletor de impostos e, ao mesmo tempo, o Banco Central. Quando o templo foi destruído pelos romanos no ano 70, o preço do ouro caiu 300% na Palestina por causa do saque do templo. Dizem que o templo consumia 25% da produção nacional, e os romanos ficavam com os outros 25% da produção, tudo em impostos.

3) Controle político — O sumo sacerdote, indicado por Roma, significava um bom controle político sobre o povo. O sinédrio se reunia no templo, e ao lado do templo ficava a guarnição romana. O templo não falava contra Roma e conseguiu pressionar Pôncio Pilatos para que crucificasse a Jesus Cristo. Para o israelita não há separação entre a fé e o político-econômico, é tudo uma coisa só. Os cristãos de hoje é que inventaram essa história de se separar a fé do político-econômico. O templo era usado pelos romanos, para com este espaço religioso acalmar o povo e ao mesmo tempo legitimar o tributo cobrado por eles. Sabemos que quem tem o poder econômico e ideológico automaticamente tem o poder político; o templo tinha tudo isto. A Guerra dos Macabeus iniciou ao redor de um altar e a Guerra Judaica de 66 também iniciou no templo, as duas contra a exploração econômica e o uso indevido do templo. Não era para menos, que o sumo sacerdote tinha que ser de confiança de Roma.

A cruz de Jesus Cristo é confronto com o templo que tinha a função de Banco Central, TV Globo e Palácio do Planalto. A cruz historicamente está vinculada aos oprimidos, pois era instrumento de tortura até a morte para escravos fugitivos e rebeldes contra o Estado. Na cruz está pendurado um camponês (trabalhador) que morreu na cidade (Jerusalém). A cruz resume bem o conflito do modo de produção do tempo de Cristo — campo x cidade. Jesus Cristo nasceu camponês e viveu no campo (Galiléia); e os evangelhos o apresentam caminhando para a morte na cidade. A cruz de Cristo sintetiza o conflito do modo de produção tributário: Jesus, camponês, é assassinado na cidade em confronto direto com o templo e Império. A cruz mostra a desarmonia reinante, o conflito, o sofrimento. O símbolo dos cristãos é um símbolo do conflito, um símbolo do instrumento de tortura. A cruz é, para os romanos, o que é o pau de arara para a repressão brasileira. Em Jesus Cristo, Javé mostra novamente que ele é um Deus dos trabalhadores, sendo ele mesmo um em carne e osso. A cruz de Jesus Cristo sintetiza o sofrimento da classe trabalhadora e sua luta frente a opressão do templo e do Império Romano.

Na cruz está pendurado, para morrer, o Deus que se fez carne. Nasceu de mulher trabalhadora e de pai trabalhador, viveu e morreu trabalhador. Os primeiros a ficarem sabendo de seu nascimento foram trabalhadores (pastores); viveu no campo, em área dos maiores conflitos sociais e trabalhistas, a Galiléia (no meio dos latifúndios e dos sem-ter-ra). Não se sabe se o seu pai foi carpinteiro por vocação e escolha própria ou se fazia parte dos camponeses expropriados de sua terra, sendo obrigado a tornar-se carpinteiro para sobreviver (assim como os camponeses do Nordeste são obrigados a migrar para o Rio e São Paulo, tornando-se operários de construção). Jesus percorreu o mesmo caminho do êxodo (ida e saída do Egito) que o povo de Israel fez. Enfrentou, como os trabalhadores escravos no Egito, a maior potência de sua época, os romanos, e sob sua mão morreu, saindo vitorioso ressuscitado, como saíram vitoriosos os trabalhadores escravos do Egito. Isto aconteceu na Páscoa, que sintetiza o êxodo e cruz/ressurreição. Jesus Cristo é o Deus que se fez trabalhador e morreu por causa dos conflitos que envolvem os trabalhadores que resistem contra a opressão. Deus assumiu totalmente as condições de vida e a morte da classe trabalhadora, pois é o Deus dela. Identificação total! Morreu nas mãos do Estado, como vivem e morrem os camponeses da Palestina sob o modo de produção tributário e também já escravagista. Um modo de produção normalmente convive com outros modos de produção, mas um é o predominante e aos poucos os outros desaparecem.

Olhando as acusações que o pessoal do templo fez a Jesus Cristo diante de Pilatos (Lc 23.1-7) e que o levaram à cruz, fica claro o conflito político-econômico-ideológico e teológico gerado pela atuação de Jesus. Acusam Jesus Cristo de:

1) perverter a nação (v. 2) — no que eles têm plena razão. Jesus Cristo certamente perverte a nação com a pregação do Evangelho do Reino. Pois essa nação não é a que Javé quer, pois é vendida e oprimida pelo Império-, e tudo legitimado pelo templo;

2) vedar o pagamento de tributo a César (v. 2). — Isto ameaça seriamente o centro da exploração do modo de produção tributário e escravagista romano. Dai a César o que é de César: devolve o dinheiro do Império a ele (o que somente é dele, não o imposto roubado), não queremos nada com ele; mas a Deus o que é dele, que é a vida boa do seu povo. Devolver o dinheiro do Império a César é não usar o dinheiro romano para a comercialização, não reconhecendo, com isto, o seu poder (o do Império). Se usamos seu dinheiro, reconhecemos a sua dominação sobre nós. A vida da criatura de Deus só pode ser devolvida a Deus se esta criatura se livra do sofrimento causado pelo Império e seus aliados;

3) julgar-se o Cristo (v. 2). — Neste termo está centrada toda a esperança.messiânica de um rei que vai reinar em paz e justiça e fazer com que todas as nações creiam em Javé. O Messias é uma grande ameaça para Roma e para o templo;

4) achar-se Rei (v.2). — Rei só há um em Roma, e todos os outros que ameaçam o reinado de César devem ser eliminados, são subversivos. O Messias é um rei, segundo a esperança do AT;

5) alvoroçar o povo (v. 5). — Onde Jesus Cristo andava havia sempre uma imensa massa trabalhadora desempregada, desenraizada e migrante que o seguia. Sua pregação sobre justiça e contra os ricos não soava bem aos ouvidos opressores. Em cada aldeia e cidade em que entrava ele movimentava o povo; concentrações de cinco mil pessoas que não estavam sob o controle do templo e do Estado certamente não eram admiradas pela elite. Sua prática e interpretação da lei criavam situações difíceis para a elite, mas ele tinha o apoio das massas;

6) ensinar (v. 5). — O ensino dele não era exatamente o ensino da classe dominante e a do templo; era o ensino sobre o Reino de Deus. Este não fecha com as propostas do reino do mundo (Império e templo). Jesus ensina a quem? Ensina a uma massa de trabalhadores massacrados, sem terra, faminta, desenraizada e migrante; o que não convém aos dominantes. O ensino versava sobre questões práticas do dia-a-dia dos trabalhadores, além de fazer uma releitura do AT e suas leis (leis estas que estavam vigentes em sua época).

Olhando para as acusações, vemos que são todas de cunho político, econômico e religioso e ameaçam o Império e o templo; razão suficiente para a elite querer ardentemente a morte de Jesus Cristo.

a.b) O centurião

A segunda coisa que acontece após a morte de Jesus Cristo, desta vez ao pé da cruz, é a confissão do centurião romano: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus. Este reconhecimento rompe os limites do judaísmo — através do carrasco. O sujeito que o crucificou é o primeiro a reconhecer a divindade de Jesus; não sei se dá para dizer que ele se converteu. Mas isto mostra que o Reino de Deus não está aí só para uma raça, não é uma questão étnica, mas algo universal. Para o judeu, o pagão não entra no Reino dos Céus. Os pagãos (conforme a experiência da Comunidade Primitiva) são os primeiros a se converterem; a saída para a expansão da Igreja está nos pagãos. Além do mais, o centurião, como os demais legionários, eram recrutados entre a plebe romana. A plebe era uma massa trabalhadora desempregada, manipulada e explorada conforme os interesses dos patrícios romanos. Quem no Império Romano fazia o trabalho produtivo eram os escravos e alguns pequenos proprietários. Os trabalhadores nas cidades quase não tinham emprego e eram massa de manobra; eram, portanto, empregados nas legiões e, como recompensa, eram colonizados (assentados) nos países dominados, tudo para manter o controle.

Na verdade, este soldado não era inimigo de Cristo, e sim, aliado; ele é, nas mãos do Império, massa de manobra e de perpetuação da opressão. Este trabalhador reconhece o seu lugar ao pé da cruz, reconhece sua classe. Cristo teve sempre uma postura a favor dos trabalhadores , dos fracos, e o legionário é um fraco e um trabalhador mercenário por forças das circunstâncias. O soldado romano era usado para massacrar os fracos para poder alimentar o modo de produção escravagista com sempre mais escravos das infindáveis guerras. Ao pé da cruz reconhece que está do lado errado, é sugado para dentro dos fracos novamente, toma consciência do seu verdadeiro papel. A cruz de Cristo mostra de que lado os fracos devem ficar e quem são os fracos. Os fracos sempre são os trabalhadores explorados.

a.c) O grupo de mulheres

O outro grupo de fracos e marginalizados na sociedade judaica eram as mulheres, independentemente de classe social. As mulheres eram escravas dos homens, eram trabalhadoras, eram produtoras sem direito ao fruto de seu trabalho.

Até à cruz este grupo de mulheres foi, sem medo, enquanto que os homens, os discípulos, fugiram. Ao pé da cruz surge um grupo de mulheres representando os setores mais marginalizados da sociedade judaica, mas que têm uma proposta que puseram em prática desde a Galiléia: seguir Jesus Cristo (acompanhá-lo aonde quer que ele fosse com todos os riscos) e servi-lo. Esta é a proposta destas mulheres: seguir Jesus Cristo e servi-lo. É a nova sociedade de marginalizados que segue Jesus Cristo e o serve. São trabalhadoras persistentes em sua proposta de uma nova sociedade. A mulher trabalhadora é, na sociedade judaica, a mais explorada, a que fazia serviços que nem o escravo judeu fazia, como, por exemplo, lavar os pés de seu senhor (marido). A mulher nesta sociedade é a trabalhadora por excelência, independentemente com quem está casada, com rico ou com pobre, pois é uma trabalhadora escrava. Resumindo: A cruz mostra três coisas: 1) Rompimento com o templo. 2) O fraco que está ao lado do opressor assume a sua classe e; o Reino é universal, como a classe trabalhadora o é. 3) Surge uma nova sociedade de marginalizados (trabalhadoras/es), que seguem Jesus Cristo e o servem. Este texto mostra que, para surgir o novo, tem que se romper com o velho. A cruz é a morte inevitável, para dar acesso à ressurreição.

Seria interessante fazer uma lista dos locais onde hoje as cruzes estão expostas. Veremos que hoje a cruz é usada para legitimar o sistema opressor, tornando-se idolatria. Temos a cruz nos bancos, nas prefeituras, na Assembleia Legislativa, no Congresso Nacional, em supermercados, casas comerciais, escolas, repartições públicas, delegacias de polícia, hospitais, tribunais civis e militares e assim por diante: legitimando o sistema econômico capitalista.

b) A ressurreição revolucionária

Vamos analisar agora a questão da ressurreição. O que o conflito central do credo cristão tem a ver com o conflito central do credo israelita? Aparentemente nada. Mas, analisando de perto, veremos que a ressurreição é a libertação do corpo da morte, e isto é uma continuação da libertação que acontece na vida conforme o credo do AT. Então a mensagem do Reino de Deus abrange a libertação da morte em vida e também após a morte. Libertação de quê? Libertação do corpo. Tanto na libertação dos trabalhadores escravos do Egito houve a libertação do corpo, como com a ressurreição, que é o segundo passo na realização completa do Reino. Para Javé não basta libertar o corpo apenas das situações de morte geradas pela sociedade, por isso deve haver uma libertação também da morte em si. Quando se fala de libertação do corpo então isto é da pessoa toda, como vemos no credo do AT. Isto Paulo acentuou no mundo dominado pela filosofia grega, e isto deve ser acentuado hoje, no mundo dominado pelo sistema capitalista, que usa a religião, assim como os gregos a usaram, para a dominação. Vamos ver como os gregos usaram a religião para a dominação.

Paulo escreve a uma comunidade que está no centro do mundo grego. Os gregos diziam que o corpo é apenas a prisão da alma. Por isso, quando o corpo morre, a alma se liberta. O importante para eles era a libertação da alma desta prisão que é o corpo. Ora, se a alma é o mais importante na pessoa, então o corpo não vale nada, até é um empecilho. E se a alma é o mais importante, então se pode fazer com o corpo o que se quer, pois o mesmo apenas é embalagem descartável. Por isso: comamos e bebamos! (l Co 15.32). Ora, quem pode dizer: comamos e bebamos? Somente os que têm acesso aos meios de produção. Quer dizer, somente os que têm dinheiro podem gozar o corpo; quem não tem dinheiro, azar, afinal, o que interessa mesmo é a ressurreição da alma. E se a alma já está salva, o que interessa o corpo, mera embalagem!

Que interpretação é esta? E a interpretação da classe dominante. Esta interpretação garante a exploração do corpo (vida) da outra pessoa. Se o corpo não interessa, então, por que se preocupar com as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora (que no mundo greco-romano eram escravos, estrangeiros e alguns pequenos proprietários)? Se o corpo é mera embalagem, então a escravidão não é problema, a exploração da classe trabalhadora não é problema, o massacre de povos inteiros pelas guerras, pelo saque e pela escravização, não é problema. Por isso, hoje, no capitalismo, o salário mínimo não é problema, os sem-terra, os favelados, desempregados, mendigos, etc. não são problema, pois a ideologia religiosa dominante também está baseada na crença da ressurreição da alma. Por isso, os cristãos capitalistas não têm consciência suja, se fazem seus operários trabalharem quase de graça todo o mês, pois somente a salvação de suas almas é que importa.

A religião e filosofia gregas criaram um céu igual ao mundo, onde há deuses fortes e fracos, grandes e pequenos e, com isto, justificavam a existência de opressores e oprimidos na terra. No mundo grego a famosa democracia e liberdade eram apenas para os senhores de escravos, para os proprietários dos meios de produção, não para os escravos. A economia era baseada no trabalho escravo, todo trabalho produtivo era feito por escravos. Os deuses e a filosofia grega garantiam a liberdade apenas aos dominadores. Mas para Paulo, liberdade em Cristo não é liberdade para os dominadores.

Esta dicotomia — corpo e alma — não é algo do Evangelho, mas apenas filosofia grega. Infelizmente a Igreja Cristã assumiu esta filosofia dentro de sua teologia, pois no decorrer da história ela teve a tradição de legitimar a exploração e a dominação, negando, na prática, a sua confissão de fé. Assim, esta filosofia grega da ressurreição da alma ainda está viva hoje na Igreja e auxilia o sistema capitalista a explorar a classe trabalhadora. Deve ficar claro para nós; a alma não ressuscita. O que ressuscita é o corpo, juntamente com a sua alma. Alma quer dizer vida. Não existe vida sem corpo. Alma é a vida dentro do corpo. Alma e corpo formam um conjunto inseparável, por isso é esse conjunto que vai ressuscitar.

Por isso a comunidade cristã autêntica não admite, sob hipótese alguma, a exploração do corpo (da vida) de qualquer pessoa, nem tortura nem qualquer modo de produção que concentra os meios de produção nas mãos de poucos, a fim de poder controlar o resto das pessoas para seu próprio benefício, tendo como norma básica a exploração do homem pelo homem, A comunidade cristã não admite que se use a vida (o corpo) de alguém para obter lucros em cima do trabalho de qualquer pessoa. Não se pode, conforme o Evangelho, usar as outras pessoas para obter riquezas geradas pelo trabalho não pago ao que as gerou. Pois assim se está explorando o corpo (a vida) e diminuindo-lhe a vida. Se o corpo ressuscita, então ele deve ser preservado e protegido para que possa ter vida plena: ele é tão importante que vai ressuscitar. Tudo o que impede ou limita ou mata a vida plena de qualquer pessoa deve ser afastado pela comunidade cristã, baseado em sua fé na ressurreição. Não há capitalismo que aguenta, se a comunidade levar isto a sério!

Por isso a fé na ressurreição não cria conformismo e nem apatia, mas anima para a luta (l Co 15.32) pela valorização do corpo (vida), é uma luta social. Por isso os cristãos no Brasil não admitem, sob hipótese alguma, a concentração dos meios de produção nas mãos de uma minoria, a venda da mão-de-obra da classe trabalhadora para os patrões que desta compra conseguem lucros fabulosos. Os cristãos não admitem a existência de milhões de sem-terra, desempregados, sem casa, sem saúde, migrantes, povos indígenas vivendo em guetos (campos de concentração), salário mínimo, repressão em cima da classe trabalhadora, a ideologia da minoria que rege a maioria, um governo da elite minoritária sobre os trabalhadores, e assim por diante.

Paulo diz em l Co 15.58 que a certeza da ressurreição leva a pessoa à luta, ao trabalho e ao progresso da luta contra a diminuição da vida. Por quê? Porque, mesmo morrendo, nesta luta viveremos, o que parece um fracasso (a morte) é a vitória; esta é a loucura da cruz! É o contrário da fé na ressurreição da alma, que não leva à luta contra a exploração e a favor da vida plena, nem precisa levar à luta, pois a alma é que vai se salvar, o corpo que se dane, é embalagem e não interessa. O critério da ressurreição é a justiça conforme Dn 12.1-3.

Cai em vista o que a primeira comunidade cristã fez: foi a prática de uma sociedade igualitária (At 2.42-47 e 4.32-37). Nisto se vê que a fé na ressurreição retoma a fé do credo do AT, que fala da libertação do Egito e que trouxe consigo uma sociedade igualitária. Para que possa haver ressurreição tem que haver a morte. E esta morte não amedronta mais, porque, conforme Ap 1.17-18, Jesus Cristo tem as chaves da morte e do inferno, que já foram derrotados. A morte e perseguição que recaem sobre muitos cristãos assassinados por causa da luta e prática da justiça e paz e vida plena é a cruz que lhes é imposta pelos opressores.

c) A comunidade que vive o credo

Vamos ver agora que tipo de pessoas eram estas da primeira comunidade cristã. Com quem Javé trabalha no NT? Com isto poderemos fazer um paralelo e uma comparação com as pessoas, com as quais Javé trabalha no AT. Javé se revela como Deus de quem no NT?

c.a) O lixo do mundo

Se lemos os textos l Co 1.18-29; 4.9-13; 2 Co 4.6-11; 11.16-33; 12.7-10, teremos uma visão clara sobre os primeiros cristãos.

Ao ler estes textos e ler Êxodo 3 vê-se logo a semelhança. As pessoas escolhidas no Êxodo são iguais às da primeira comunidade cristã. Em suma, Deus outra vez se mete com o lixo do mundo. Façamos uma lista das qualidades das pessoas da primeira comunidade cristã, conforme estes textos: poucos são sábios, poderosos ou de procedência nobre, Deus escolheu as coisas loucas, fracas, humildes, desprezadas e as coisas que nada são, para reduzir a nada as que são. As pessoas da comunidade estão em último lugar, são espetáculo para o mundo, desprezíveis, sofrem fome, sede, nudez, são esbofeteadas, não têm morada certa, se cansam trabalhando com as próprias mãos, são injuriadas, caluniadas, são lixo do mundo e escória de todos. São em tudo atribuladas, perplexas, abatidas, são entregues à morte por causa de Jesus. As pessoas têm muito trabalho, sofrem prisão, açoites, vivem em perigos de morte, são fustigadas com varas, apedrejadas, sofrem frio. Quando são fracas, então é que são fortes; o seu poder se aperfeiçoa na fraqueza.
A primeira comunidade não era opressora, mas oprimida. Deus está com ela exatamente por isso, para libertá-la, pois é o Deus dos oprimidos. E até hoje a realidade nos tem mostrado que os ricos não são oprimidos, e sim, opressores; os oprimidos via de regra são os que pertencem à classe trabalhadora. Ao olhar a trajetória histórica da classe trabalhadora e ler a descrição da primeira comunidade crista, vemos a semelhança; sabemos de outros escritos que os primeiros cristãos eram em sua esmagadora maioria realmente trabalhadores escravos ou livres. As pessoas descritas nestes textos têm a incumbência de transmitir a mensagem do Reino com a sua maneira de viver. O texto diz claramente que elas foram escolhidas para reduzir a nada as coisas que são. O que é isto? O Império daquele tempo. Hoje as coisas que são têm outra forma e nome, mas, ainda assim, devem ser destruídas. A comunidade reduz a nada as coisas que são, com a fraqueza, a cruz, que se torna força e poder de transformação. Sua mensagem é a demonstração do Espírito e de poder e não linguagem persuasiva de sabedoria (l Co 2.4). Em contraposição aos deuses romanos, que tinham todo o poder estatal ao seu lado (César era deus), que podiam transmitir a mensagem de seus deuses com pompa e ostentação, Paulo diz: Foi em fraqueza, temor e grande tremor que estive entre vós. (l Co 2.3.). Esta fraqueza é a loucura para o mundo, e não dá credibilidade frente aos poderosos, pois a maneira de Javé se revelar sempre é diferente da dos poderosos, l Co 8.8-13 mostra que o critério da ação da comunidade é o fraco. Em quase todos os modos de produção experimentados pela sociedade, quem sempre determinou o que fazer foram os fortes (elite); na comunidade cristã são os mais fracos que determinam o que fazer (Mt 25). l Co 1.17-18 diz claramente que a cruz é a chave para a pregação e a vivência, sem esquecer que não se pode falar em cruz sem falar em ressurreição. Em si, serão os fracos que reduzirão a nada o que é. Isto é muito semelhante ao que o barbudo do século passado disse: O capitalismo produz os seus próprios coveiros, que é a classe trabalhadora.

c.b) A comunidade perseguida

Tomaremos alguns textos para explicar por que a comunidade cristã foi perseguida e ainda o é hoje: Ap 2.8-11; l Co 1.28; Rm 12.1-2; l Co 15.19-28.

A carta à comunidade de Esmirna (Ap 2.8-11) traz a mensagem central da ressurreição bem clara. Começando com o nome que se dá ao Cristo: o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver. Com isto se anima e se dá esperança à comunidade, afirmando que Jesus Cristo, e não o Império Romano, comanda a história. A comunidade é a portadora — pela sua vivência — da mensagem da ressurreição. Em Esmirna já houve mártires, e todos estavam ameaçados de morte, por causa da fé em Jesus Cristo. Por que a fé em Jesus Cristo é uma ameaça ao Império? Por que uma pequena comunidade de pessoas pobres é uma ameaça ao poderoso Império Romano?

Se olharmos para as cartas a Esmirna e a Filadélfia, veremos que não há reprovação para elas. São duas comunidades pobres e fiéis. É o Deus que se identifica com o pobre e perseguido e o exorta a ser fiel até a morte para herdar a vida eterna. A exportação para ser forte é, aqui, questão de fidelidade ao Deus dos pobres, pois só assim surgirá a nova sociedade. Do contrário, o Império engolirá a todos com a sua repressão e ideologia. O Império estava a fim de terminar com os cristãos, pois a proposta alternativa de poder destes era uma ameaça ao poder despótico de-Roma. Uma sociedade fraterna ameaça uma sociedade opressora. A proposta do Reino era o fim do Império e do seu modo de produção. A luta da comunidade cristã era luta aberta contra os deuses romanos, inclusive contra o culto ao deus César. Ela não aceitava submeter-se a estes deuses que viviam e geravam a morte. É desta morte que o Império vivia, por isso Ap 13.4 diz que o diabo deu a autoridade ao Imperador. Aqui o Deus dos pobres e fracos enfrenta o deus César. Em l Co 1.28 fica claro, por que o Império persegue os cristãos. Porque Deus escolheu as coisas humildes, desprezadas e as que não são, para reduzir a nada as ,que são. Isto é uma ameaça direta ao Império e seu modo de produção. Reduzir a nada o poder político, econômico e ideológico daquele tempo e o de hoje é a proposta dos cristãos, porque este poder gera a morte e vive dela. A proposta de reduzir a nada o poder era feita pela maneira de viver e de organizar a sociedade. Atos 2 e 4 mostram um pouco disto; uma sociedade de iguais onde não há opressão e exploração. Isto realmente é uma ameaça aos poderosos.

Em Rm 12.1-2 diz claramente: é o corpo, a vida, que o cristão põe nesta empreitada de não se conformar com este século. É a proposta de não compactuar com a opressão e a exploração. Não compactuar significa realizar uma outra proposta. Esta começava com a não-ado-ração de César e seus deuses, e isto é desobediência civil. Pois todo o Império estava baseado no aparelho ideológico religioso. César é deus. Estado e religião se legitimam mutuamente. Não se sujeitar a um significa rebelar-se contra o outro. Os cristãos são subversivos por excelência, pois o Reino de Deus é subversivo, quer subverter este mundo para mudá-lo. Mas o mundo não quer se deixar mudar; daí a perseguição.

l Co 15.19-28 é um dos textos mais claros da Bíblia. Ele diz que o fim virá quando Cristo entregar o Reino construído a Javé; e isto acontecerá, quando ele tiver destruído todo principado, potestade e poder e o último inimigo a ser destruído, a morte. Se nós cristãos somos instrumentos de Cristo, então a nossa missão está clara: participar, com Cristo, da destruição do principado, potestade e poder. A morte de Jesus Cristo já começou a destruí-los com a sua ressurreição. O Reino de Deus só vem, quando os regimes políticos e os sistemas econô¬micos do mundo tiverem desaparecido. De textos como este nos vem a clareza de que a verdadeira comunidade cristã representa uma ameaça aos poderosos opressores.

c.c) A comunidade com problemas internos

Gostaríamos de fazer, ainda, uma pequena alusão à questão dos ricos que entraram na comunidade e o problema daí decorrente. A sociedade da primeira comunidade deixou de ser fraterna e igualitária com a presença da desigualdade financeira de alguns membros. Em l Co 11.17-22, Paulo mostra a cisão acontecida por causa da presença de pessoas de mais posse. Isto gerou a desigualdade, e a mesma situação da sociedade envolvente se fez sentir no seio da comunidade. Não eram mais os escravos e demais trabalhadores que determinavam a ação da comunidade; por isso houve injustiças e divisões. A mensagem da filosofia grega estava entrando (ou ainda não havia saído) na comunidade e, por isso, não sobrava mais nada para os trabalhadores que vinham mais tarde para a Santa Ceia. Paulo pergunta: Ou menosprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada têm? (l Co 11.22b). Menosprezar a Igreja de Deus é o mesmo que menosprezar os pobres, e pobre quer dizer trabalhador (pois rico não é trabalhador nem é pobre). Menosprezando o marginalizado, está-se destruindo o Reino, pois o Reino é deles (Lc 6.20b); está-se destruindo a essência da comunidade. (Olhando isto e olhando para o trabalho de nossa Igreja, se chega à conclusão de que estamos no início dos inícios com a nossa pregação/vivência.) A comunidade começou a ter problemas internos na medida em que a desigualdade social foi se instalando dentro dela.

Em Ap 3.14-22 se repete o mesmo problema. Por isso, João faz uma séria advertência. Laodicéia era uma cidade com indústrias de tecidos e de remédios. Havia muita riqueza nesta cidade. Os membros da comunidade eram ricos. E, pelo fato de serem ricos, estavam correndo o risco e o perigo de misturar a ideologia do Império com a mensagem do Reino. Faziam muitas obras, diz João. Mas delas se vê que a comunidade ainda não assumiu a radicalidade do Evangelho. Lembrando que só se pode ser rico às custas dos trabalhadores que tiveram a maioria de seu salário retido (Tg 5.4). Ò v. 17 diz que os mesmos se sentiram auto-suficientes, não eram perseguidos, o que era sinal de que o testemunho vivido não colocava o Império em choque com eles. Não ameaçavam o Império, estavam adaptados a ele. O nome de Jesus aqui é: Amém — assim é. Não dá para fazer jogo duplo, ou se é ou não se é, frio ou quente. A favor do Reino ou contra. A comunidade se mantinha neutra, portanto, a favor do Império. João faz uma repreensão séria a ela (v. 19), chama-a ao arrependimento (semelhante a Lc 6.24-26). A comunidade perdeu o rumo dentro da repressão geral e feroz movida contra os cristãos e optou por ser morna, do contrário seria perseguida e ficaria pobre. A riqueza lhe dava uma segurança, falsa, no entanto, diante de Deus. São chamados, pois, a serem testemunhas fiéis e verdadeiras (v. 14b). Aqui a riqueza é sinal claro de perdição, é o sinal de não querer ser igual e fraterno; e esta posição não se consegue manter diante da mensagem do Reino. Quando João diz que Cristo venceu (v. 21 b), ele quer dizer que ele assumiu a cruz e que sem cruz (morte) não há ressurreição. A comunidade não queria perder o poder e, por isso, o estava perdendo, diante do Evangelho. O v. 21 diz que o vencedor se sentará no trono. A comunidade seria apenas vencedora, assumindo o Evangelho que faria dela lixo do mundo. João os chama a serem lixo do mundo, para serem, então, vencedores e se sentarem no trono e terem o verdadeiro poder. Laodicéia é chamada por João de infeliz, miserável, cega e nua (v. 17b), enquanto que Esmirna, que era, de fato, uma comunidade pobre, em contraposição, é chamada rica.

c.d) Conclusão

Assim temos uma visão das pessoas que compunham a comunidade cristã que confessava o credo da ressurreição. As pessoas a quem Deus se ligou no NT são semelhantes aos trabalhadores escravos do Egito. Fica, portanto, claro que Deus usa o lixo do mundo para construir o seu Reino. Este Reino inicia com o processo de libertação da opressão em que vive o lixo do mundo e se completa com a ressurreição do corpo da morte.

Assim a Chave de Leitura da Bíblia tem como base a confissão de fé do AT e do NT, cuja essência é o êxodo e a cruz/ressurreição. Javé é confessado tanto no AT como no NT pelos setores oprimidos da sociedade; e os setores oprimidos sempre são os trabalhadores. Assim, ao lermos o AT, temos que ter em mente o conflito do êxodo; e ao lermos o NT, devemos ter em mente o conflito da cruz/ressurreição.

Estes são os óculos com as duas lentes (êxodo — cruz/ressurreição) para se ler a Bíblia.

4. Esquema para um trabalho com os trabalhadores

a) Ler em grupos Dt 6.21-23 e 26.1-10

Questões:

a) assuntos que o credo apresenta

b) conflito central Plenário: colocar as respostas no quadro e discuti-las

b) Ler em grupos Êx 3.1-22

Questões:

a) características de Deus em cada versículo

b) qual o nome de Deus Plenário: colocar as respostas dos grupos no quadro, discuti-las
e complementá-las em cada versículo

c) Ler em plenário ou grupo l Co 15.3-4

Questão: Conflito central

d) Ler em grupo Mc 15.33-41 (morte/cruz)

Questões:

a) o que mudou após a morte de Jesus?

b) em que lugares vemos hoje cruzes afixadas e qual o
seu significado Plenário: aprofundar os três acontecimentos após a morte de Jesus
e o significado das cruzes hoje

e) Discutir em plenário a questão da ressurreição

Questão: por que os cristãos são perseguidos Plenário: clarear as questões levantadas

f) Em grupo ler os seguintes textos: l Co 1.18-29; 4.9-13; 2 Co 4.6-11; U.16-33; 12.7-10

Questão: características das pessoas que compõem a comunidade Plenário: respostas no quadro e compará-las com as características das pessoas do êxodo

g) Em grupo ler: Ap 2.8-11; l Co 1.28; Rm 12.1-2; l Co 15.19-28

Questão: por que os cristãos são perseguidos Plenário: clarear as questões levantadas

Obs.: Este estudo tem a duração de dois dias. Um dia para estudar o AT e outro para o NT. Serão necessários mais dois dias de estudo para estudar os modos de produção, desde o tribal até o comunista. Estes dois estudos dão uma pequena base para a compreensão da Bíblia.

Ill — Esquema do tema Terra

Introdução à Bíblia

a) Bíblia, Livro feito em Mutirão — Carlos Mesters, capítulo 2 e a introdução do capítulo l

b) Textos que mostram os conflitos da vida, onde o texto surgiu a partir de um conflito real: Mt 20.1-16; Jz 19.22-30 (ler em plenário e deixar os participantes descobrir os conflitos num rápido cochicho).

l — Modo de produção tribal — estudar em grupos um texto que fala deste MP
Após, em plenário, explicar a situação geográfica e político-econômica da Palestina e do Egito em 1.200 antes de Cristo.


Texto: Js 8.1-35

Questões:

a) Conflito central

b) Organização dos opressores e objetivo

c) Organização dos camponeses e objetivo

d) Formas de luta dos camponeses

e) Como aparece o modo de produção no texto

Atualização: trabalho em grupo e, após, plenário

a) Qual o conflito no campo, no Brasil de hoje

b) Organização dos capitalistas e seu objetivo

c) Organização dos sem-terra e pequenos proprietários e seu objetivo (conquista do poder para mudar o modo de produção)

d) Formas de luta dos sem-terra e pequenos proprietários hoje

e) Como é o modo de produção hoje (explicar o capitalismo em esquema)

2 — Modo de produção tributário — estudar o texto em grupo Texto: l Rs 5.1-18 (ou l Rs 4.1-28 e 10.14-11.13)

Questões:

a) Conflito central

b) Organização do Estado e seu objetivo

c) Organização dos camponeses

d) Como acontece a exploração dos camponeses

e) Como aparece o modo de produção

Atualização: trabalho em grupo e, após, plenário

a) Como acontece a exploração dos camponeses hoje

b) Quais os meios que o Estado usa para que 10% da popula¬ção explore 90% da população (aparelho repressivo e ideo¬lógico do Estado)

c) Qual o modo de produção que queremos e por quê

3 — Modo de produção escravista — trabalho em grupo e, após, plenário

Texto: Fm 8-21 (ou Ap 18)

Questão:

a) Conflito central

b) Como aparece o modo de produção

c) Posição de Paulo (ou João em Ap) frente ao conflito central e ao modo de produção

d) Proposta

Atualização: trabalho em grupo e, após, plenário

a) Que tipo de escravidão existe hoje no Brasil

b) Qual a diferença entre o escravo e a exploração no modo de produção capitalista

c) Qual a proposta da classe trabalhadora para acabar com a exploração capitalista, e como ela se realiza.

Obs.: Literatura sobre os modos de produção:

DREHER, C. A. O Livro dos Juízes. In: Centro de Estudos Bíblicos. Belo Horizonte, s. d. - HOUTART, F. Religião e Modos de Produção Pré-capitalistas. São Paulo, 1982. — MPLA. O que é a história da sociedade humana. São Paulo, s. d.


IV - Esquema do tema Organização

A. Organização do Estado

Textos: Gn 11.1-9; Gn 47.13-26; l Sm 8.1-22; l Rs 4.1-28 e 10.14-11,13; l Rs 5

l — Questões para o trabalho em grupo — resultados serão discutidos no plenário.

a) Conflito central

b) Organização do Estado e seu papel

c) Organização do povo (trabalhadores) e seu papel

d) Elementos: a) libertação b) opressão

e) Posição de Deus frente ao conflito central

f) Propostas

g) Avanços e limitações do povo (trabalhadores) e do Estado

h) Como o Estado explora o povo

i) Como o modo de produção aparece no texto

Obs.: Estas questões servem para todos os demais textos deste estudo. Se houver pouco tempo, estudar apenas GnllelRs4elO

2 — Função do Estado no capitalismo — estudo em grupos e, após, plenário.
O texto estudado é de: Caderno de Formação n°. 5. Noções Básicas de Economia Política. P. 34 — 42. (Editado por 13 de Maio, Núcleo de Educação Popular. R. Dona Avelina, 55 —V. Maria-na. 04111 - São Paulo - SP).

3 - Textos: Mt 10.16-23; Ap 13.1-18; Lc 22.66-23,7

Obs.: Este capítulo tem a duração de dois dias de estudo. B. Organização do Povo

1 - Textos: Nm 27.1-11; Êx 18.13-27; Lv 25.1-55; Js 8.1-29; l Sm 12.1-25
(Se faltar tempo estudar somente Nm 27 e Js 8)

2 — Sindicalismo e CUT — estudo em grupos e, após, plenário.
Uso o Caderno de Formação n°. 1. — Sindicato c sua Fundão. (Editado pelo CAMP. Cx. Postal 872 - 90620 - Porto Alegro - RS).

3 — Textos: l Rs 11.26-12.24; 2 Rs 11.1-21-grupo e plenário.

4 — Modos de produção e regimes políticos — explicar a diferença.

5 — Socialismo — grupo e plenário

Caderno de Formação no. 5 (cf. acima) p. 50-58.

6 - Textos: Mt 20.1-16; Mt 20.20-28; Mc 6.30-44; At 2.42-47 e 4.32-37 (grupo e plenário)

Obs.: Duração deste capítulo: dois dias.


Autor(a): Günter Adolf Wolff
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: 14
Natureza do Texto: Artigo
ID: 17915
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