A Reforma e a Unidade da Igreja

29/10/1967

A REFORMA E A UNIDADE DA IGREJA

Discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no
Ato Comemorativa da Reforma em Porto Alegre1

Há 450 anos, no dia 31 de outubro, D. Martin Luther, monge da Ordem dos Agostinianos e professor de Teologia na Universidade de Wittenberg, publicou 95 teses sobre as indulgências, afixando-as à porta da Igreja do Castelo em Wittenberg. Esse ato, hominum confusione et Dei providentia2, veio a ser o início da Reforma. 

Reforma é renovação da Igreja, tendo por base e critério o Evangelho de Jesus Cristo. Reforma não é revolução. Martin Luther não agiu como rebelde, nem como defensor de quaisquer interesses ou valores humanos, mas agiu em nome do Evangelho, como professor eclesiástico responsável, como filho obediente da Igreja. Jamais teve o pensamento de fundar uma nova Igreja, porque uma nova Igreja seria, em si, uma contradição. Só pode haver uma única Igreja, a Igreja instituída por Jesus Cristo mesmo. Mas esta Igreja, por ter a sua existência no mundo, por serem humanos os seus membros, sempre está em perigo de deformar-se, em sua doutrina e vida, esquecendo-se de que Cristo é o seu único Senhor, e único critério de toda a sua atuação. Por isso a Igreja constantemente deve reexaminar a sua realidade atual à luz do Evangelho, deve estar sempre aberta para as suas forças renovadoras. Foi este o sentido da Reforma de Martin Luther: de chamar a Igreja de sua época a um exame consciencioso e integral de sua própria situação em confronto com a vontade do Evangelho de que não há salvação senão em Jesus Cristo, que somos justificados perante Deus unicamente pela fé, que para a pregação e a vida da Igreja não há autoridade ao lado da Sagrada Escritura. Contra todas as deturpações da verdade do Evangelho ocorridas na Igreja durante os séculos, a Reforma proclama: somente Cristo — somente pela fé — somente a Sagrada Escritura.
Não é verdade que a Reforma causou a separação da Igreja. Já muitos séculos antes, no ano de 1054, desaparecera a unidade visível da Igreja pela separação da Igreja Ortodoxa da de Roma. Além disso, é um fato histórico que Luther não se separou da Igreja. A responsabilidade por mais essa divisão recai sobre as autoridades eclesiásticas da época, ou seja o Papa Leão X3 que, em 1520, excluiu Martin Luther da Igreja Romana. Convém lembrar, porém, que naquela época não era dogma ainda a doutrina da infalibilidade do Papa. Havia, sim, ao lado do Papa, outra autoridade na Igreja, o Concílio Geral, e era questão aberta na Igreja qual a autoridade superior. Houve Papas que foram destituídos por um Concílio. Luther, em todo o caso, apelou, reiteradamente, da decisão do Papa para um Concílio, mas não foi atendido. Após 450 anos haveria outro Papa4 que, de própria iniciativa, e surpreendendo a todos, convocaria um Concílio5, com a expressa finalidade de renovar a Igreja, um Papa que se referiria aos cristãos não-católicos como a irmãos, reconhecendo uma atuação de Cristo também em outras Igrejas. Não podemos alterar a história. Mas não deixa de ser fascinante imaginar como teria sido o percurso da história dos últimos séculos, se em lugar de Leão X tivesse estado um João XXIII ou um Paulo VI6. 

O Concílio Vaticano II não somente introduziu na Igreja Romana reformas radicais, p. ex. quanto à liturgia, ao laicato, à Sagrada Escritura, mas a levou a uma melhor compreensão da Reforma do século XVI, bem como a um novo espírito de fraternidade cristã. Não se refere mais o Concílio, no Decreto sobre o Ecumenismo, às outras Igrejas como a seitas, mas como a Igrejas ou comunhões eclesiais. Não se apresenta a Igreja Romana como satisfeita consigo mesma e seu estado atual, mas declara que a Igreja no caminho de sua peregrinação é chamada por Cristo para uma Reforma contínua, de que necessita por ser um organismo humano e terrestre. Essa Reforma atinge também a estrutura eclesiástica: procura-se dar lugar ao coleguismo ao lado do centralismo; e em lugar da uniformização começa a manifestar-se a variedade dentro da Igreja. E muito importante para a relação para com as Igrejas separadas é a declaração do Papa na abertura do Concílio: Também dos pecados contra a unidade vale o testemunho de S. João (1 João 1.10) : 'Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós.' Humildemente pedimos perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores. 

Aqui foi dito qual devia ser a atitude natural entre cristãos, e o que é a base de todo o esforço ecumênico pela unidade: não exigir primeiro dos outros que se arrependam, mas começar com o próprio arrependimento; não esperar que primeiro os outros se mudem, mas dar o primeiro passo com a própria disposição de mudar. 

Essa ação renovadora dentro da Igreja Romana em nossos dias impõe a nós, filhos da Reforma de Martin Luther, o dever e a grande responsabilidade de reconhecermos que a Re-forma da Igreja não se pode limitar a um ato histórico do passado, mas que a Igreja constantemente necessita de ser renovada pelo Evangelho, para que a sua realidade esteja de acordo com a verdade do Evangelho. 

Comemoramos com gratidão o 450º. aniversário da Reforma de Martin Luther. Mas a Igreja a que pertencemos tem mais do que 450 anos: é a Igreja que vem dos dias dos apóstolos, por através dos séculos da Idade Média, sobre Martin Luther até os nossos dias, a Igreja que tem Jesus Cristo por Senhor, e que por Ele foi enviada ao mundo para proclamar a benigna verdade do Evangelho. 

Seria uma comemoração inteiramente superficial se quiséssemos hoje gloriar-nos da Reforma do século XVI, sem considerar a realidade atual de nossa Igreja. Examinemos a nossa situação, à luz da Reforma, em confronto com o testemunho do Evangelho! Estará em ordem quanto à pregação do Evangelho, ao testemunho perante o mundo, quanto à frequência dos cultos, à comunhão da Santa Ceia e quanto ao estudo da Bíblia? Que significa para nós o consensus fidelium7, de tanta importância para os Reformadores? E qual o lugar do sacerdócio geral entre nós, e por quem é exercido? 

Essas perguntas são suficientes para mostrar-nos o quanto temos motivo, nós, filhos da Reforma, de ouvir o chamado para urna renovação que parte das origens da Igreja no Novo Testamento. 

E por isso não podemos comemorar o jubileu da Reforma sem tomar conhecimento da amplitude e do sentido da renovação que se efetua na Igreja Romana de hoje. Essa renovação está intimamente ligada, como à sua meta final, ao esforço pela reunificação das Igrejas separadas. o pensamento romano que essa sua renovação facilitaria às Igrejas separadas a reencontrar a unidade na Igreja Romana. 

Continua, pois, a convicção de que a unidade da Igreja só pode ser obtida por através de uma comunhão inteira dos cristãos separados com a Igreja Católica Romana. Mas não se fala mais de um simples retorno para o seio da Igreja Romana atual, não é somente repetido esse convite às outras Igrejas. Parece antes o pensamento voltar-se para uma Igreja Romana no futuro, uma Igreja renovada, pura, sendo o Concílio apenas o início desse longo processo de renovação, assim que a unificação pretendida, a meta final, poderia ser interpretada como resultado de uma transformação de ambos os lados, não mais simples volta de um para o outro, mas o fim de um caminho para a frente de ambos, sendo que um ponto do futuro, na frente, se tornaria ponto de convergência de ambos os caminhos; nesse caso, não mais haveria a exigência que uma parte se sujeitasse à autoridade da outra, mas se trataria de uma reconciliação, de uma aceitação recíproca em verdadeira e integral comunhão. Seria um caminho, em cujo percurso sucessivamente mais se reconheceriam uns nos outros, mais se aproximariam, mais colaborariam, um caminho do qual de antemão naturalmente não se poderia fixar o comprimento, um caminho no qual ambos os lados somente poderiam entregar-se inteiramente à direção do Espírito Santo.
É verdade, permaneceriam também em sua incorrigibilidade os dogmas romanos e o primado do Papa. Mas, não ficaria excluída a possibilidade de uma nova interpretação dos mesmos. Devemos admitir que o Espírito Santo tem o poder de levar a Igreja Romana também a um novo entendimento, uma nova interpretação de seus dogmas fixados em outras épocas e outras circunstâncias. Nossa esperança será tanto maior quanto mais forte for a nossa confiança na atuação do Espírito Santo, não só em uma, mas em todas as Igrejas. 

Mas por enquanto temos diante de nós a realidade atual da Igreja Romana. E parte dessa realidade é também o fato que para ela, a conditio sine qua non8 da unificação é o reconhecimento, por parte dos separados, de todos os dogmas romanos, inclusive mariológicos, como da primacia do Papa no sentido de sua infalibilidade, conforme a definição do Concílio Vaticano I9

Embora soframos, também nós, sob a separação das Igrejas --- e por isso colaboramos com 271 Igrejas dentro do Conselho Mundial de Igrejas, num esforço e diálogo permanente em busca da unidade dentro da verdade — sentimos discordar da Igreja Romana, por motivos de consciência, em não podermos aceitar o seu cordial convite de retornarmos ao seio da Igreja Romana, onde tudo encontraríamos o que atualmente nos é dado, para assim restabelecer a unidade visível da Igreja cristã. 

Mas esta é a nossa convicção: quanto mais perto todos estivermos de Cristo, tanto mais perto estaremos da unidade. Em Cristo ela já é realidade presente; em Cristo somos um. Por crermos em Cristo, cremos uma santa Igreja apostólica e católica, e nos sabemos em caminho para a realidade de um só rebanho e um só pastor — Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Mas, por termos essa fé, por crermos uma Igreja, por sermos um em Cristo — temos que trabalhar e esforçar-nos pela unificação. Não que nós pudéssemos criar a unidade — mas somos chamados a dar lugar a ela. Por sermos um em Cristo, sejamos um. Dar lugar à unidade importa em questionar, em pesquisar, em responder, em reexaminar as diferenças dogmáticas empregando todos os meios de que dispomos, tudo para que as Igrejas em conjunto cheguem a confessar e a louvar os grandes feitos de Deus. No reexame consciencioso dos problemas de jurisdição, da autonomia, da autocefalia deve ser encontrada a forma de comunhão na qual se torna transparente a unidade da Igreja. Todo esse esforço conjugado terá promissão somente se for empreendido num espírito de respeito mútuo e de amor que se sabe responsável para que nada se perca do que Deus confiou a cada uma das Igrejas. 

A unificação se torna impossível se uma ou cada Igreja se considerar, em sentido exclusivo, a única verdadeira Igreja, exigindo das outras que aceitem todas as suas declarações dogmáticas sem diferenciação alguma. 

Mais uma vez: a unidade não será resultado dos nossos esforços. A unidade nos é dada por Deus em Cristo. Ele em sua misericórdia não deixa de compadecer-se das Igrejas usando-as em toda a sua problemática como meios para a salvação do mundo. A unificação das Igrejas será efetuada por Ele que dá o querer e o fazer conforme o seu agrado 10. Por ser dádiva de Deus, todo o esforço ecumênico pela unificação é acompanhado pela oração das Igrejas para que Deus por sua graça queira conceder essa unidade. Só de'Ele, da atuação de Deus mesmo, esperamos a unidade. Por isso na Semana da Oração, cristãos de todas as Igrejas, ao mesmo tempo e sempre mais em conjunto, rogam pela unidade da Igreja de Jesus Cristo, como e quando for de sua vontade. 

Seja qual for a forma que Deus providenciou para a cristandade unida — dela será parte integrante a unidade do Evangelho de Cristo, a unidade do batismo, a comunhão da Santa Ceia e o reconhecimento mútuo do ministério. Isso não é concepção humana, mas necessidade divina inerida à Igreja desde a sua origem. Isso na Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, ao qual pertencem 271 Igrejas, em Nova Delhi11, encontrou a seguinte formulação: Cremos que a unidade, que é ao mesmo tempo a vontade de Deus e sua dádiva à sua Igreja. se torna manifesta, se em cada lugar todos que foram batizados em Jesus Cristo, confessando-o como Senhor e Salvador, pelo Espírito Santo forem conduzidos a uma comunhão responsável que confessa a mesma fé apostólica, prega o mesmo Evangelho, parte um só pão, que se une em oração e vida comum, em testemunho e serviço a favor de todos. São ao mesmo tempo unidos com toda a cristandade em todos os lugares e todos os tempos de tal modo, que ministério e membros são por todos reconhecidos, de tal modo, que todos possam agir e falar em conjunto, tal como a situação concreta o exigir no que diz respeito a tarefas para as quais Deus chama o seu povo. 

Nessa definição da unidade acha-se compreendida igualmente a declaração da Confessio Augustana, a mais importante das confissões da Igreja Luterana, no seu Artigo VII, De Ecclesia: Ensinamos ainda que sempre existiu e sempre existirá uma santa Igreja cristã. Ela é a congregação de todos os fiéis, entre os quais se prega o Evangelho puro e onde se administram os sacramentos de acordo com o Evangelho. Pois é suficiente para a verdadeira unidade da Igreja cristã que em seu meio se pregue o Evangelho com unanimidade, em seu sentido verdadeiro, e que os sacramentos sejam administrados de acordo com a palavra divina. Para ser mantida a verdadeira unidade da Igreja não é necessário que em toda a parte haja cerimônias idênticas, instituídas por homens, como S. Paulo diz aos Efésios cap. 4, v. 4: Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação: há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. 

Notas:

1. Publicado, em forma abreviada, sob o título «450 Anos — 31 de Outubro de 1517» em: Igreja em Nossos Dias, 1967, no., 10 («45O Anos de Reforma»), 14 s. 

2. Apesar da confusão dos homens, mas pela providência de Deus. 

3. Papa de 1513 a 1521. 

4. João XXIII, Papa de 1958 a 1963. 

5. Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965. 

6. Papa desde 1963. 

7. O consenso dos fiéis.

8. A condição indispensável. 

9. Realizado em 1869/70. 

10. Fp.. 2, 13. 

11. III Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas em 1961. Em seguida o autor cita uma passagem do relatório sobre o tema «Unidade», v. Willem A. Visser't Hooft (ed.): Neu-Delhi 1961, Dokumentarbericht über die Dritte Vollversammlung des ökumenischen Rates der Kirchen, Stuttgart, Ev. Missionsverlag, 24 ed., 1962, 134.

Veja:

Testemunho Evangélico na América Latina

 Editora Sinodal

 São Leopoldo - RS

 

 

 


Autor(a): Ernesto Theophilo Schlieper
Âmbito: IECLB
Natureza do Texto: Vários
ID: 19749
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Um cristão não pode ser ofendido a tal ponto que não possa mais perdoar.
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