Gênesis 17.1-13

01/01/2002

Prédica: Gênesis 17.1-13
Leituras: Lucas 2.2 e Romanos 1.1-7
Autor: Acir Raimann
Data Litúrgica: Ano Novo
Data da Pregação: 01/01/2002
Proclamar Libertação - Volume: XXVII
Tema: Ano Novo

1. Contexto litúrgico

1o de janeiro de 2002 – este é um dia festivo, não porque o Natal foi celebrado há uma semana, ou porque um novo ano civil está iniciando, mas porque o Deus-menino foi circuncidado no oitavo dia e recebeu o nome que está acima de todo nome. Nos primeiros séculos da Igreja neo-testamentária, todo esse período do ano aclesiástico acontecia em meio a uma das maiores festas pagãs. Pode-se imaginar a dificuldade dos cristãos em observarem os dias santos, circundados por manifestações ostensivas dos prazeres e da luxúria do mundo pagão. Malcomparado, era o carnaval da época. Isso é mais verdadeiro ainda com respeito a este dia festivo da Igreja, pois coincidia com o 1o de janeiro, quando o mundo romano entregava-se às orgias de Saturnália.
A Igreja, contudo, em tempo algum, jamais conectou o 1o de janeiro ao início de um novo ano eclesiástico, como também jamais reconheceu qualquer dia de ano novo senão o Primeiro Domingo de Advento. Os reformadores luteranos temiam que as comemorações do ano novo viessem a tornar secundária a circuncisão de Jesus.

2. Leituras do dia

a) Romanos 1.1-7

Esta é uma perícope cuja forma de introdução ocorre em cartas no tempo dos romanos e que apresentava a saudação de “A para B”. É uma introdução expandida. Tais expansões ocorreram em todas as cartas de Paulo, mas esta é a mais longa delas. Os primeiros seis versículos identificam Paulo; o sétimo, os endereçados. Ao identificar-se, o apóstolo agrega uma síntese da teologia da redenção. A antítese entre “segundo a carne” (v. 3) e “segundo o espírito de santidade” estabelece o equilíbrio entre a humanidade de Cristo e sua divindade. Deus coloca o seu selo sobre a obra de seu Filho e a enaltece grandemente. A divindade velada que se manifestou através de sua carne durante seu nascimento e vida entre os homens brilhou com esplendor inconfundível no Filho ressuscitado.

b) Lucas 2.21

O evangelho do dia fala sobre a circuncisão de Jesus. Esse episódio aconteceu provavelmente em Belém. Jesus iniciou sua missão de cumprimento da lei no oitavo dia – o primeiro dia da nova semana da criação de Deus, que será também o dia da sua ressurreição. A obediência de Cristo à lei envolve o derramamento do seu sangue pela primeira vez.

A circuncisão de Jesus é um evento único, mas com dimensões universais. O prepúcio representa pecado e rebelião (Cl 2.13). Embora Cristo não tenha pecado, ele assume o lugar da humanidade debaixo da lei como aquele que carrega o pecado – como também acontece no seu batismo. Os benefícios da circuncisão de Jesus são recebidos no santo Batismo, como diz Deus pelo apóstolo em Cl 2.11-12. Paulo fala da circuncisão como feita “não por intermédio de mãos” e “como circuncisão de Cristo”. Debates aconteceram na Igreja Cristã neotestamentária sobre se os gentios deveriam ou não ser circuncidados (At 15; Gl 2.12; 5.2-6). A questão resolve-se pela compreensão adequada do cumprimento feito por Cristo de todo o Antigo Testamento em nosso favor, pois, na circuncisão daquele que representa toda a humanidade, todos os povos são circuncidados uma vez por todas.

No momento em que seu sangue é derramado, Cristo recebe o nome dado pelo anjo: Jesus. Certamente os ouvintes de Lucas conheciam o que Mateus registrara, ou seja, que esse nome significa “Ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).

O nome “Jesus” é a versão em português da versão grega do nome hebraico. O nome hebraico é Josué, abreviação de Yehoshua, herói do livro de Josué. “Jesus” será o nome pessoal dele, pelo qual enfermidades serão curadas e demônios serão exorcizados, pecados serão perdoados e santidade será conferida. Na linguagem bíblica, ser chamado pelo nome de alguém outro significa pertencer a ele. Proclamar o Evangelho é o mesmo que proclamar o nome de Jesus (cf. At 5.40; 8.12; 9.15). Em Jo 3.18, a fé cristã é definida como fé no nome de Jesus. Os discípulos devem sofrer em nome de Jesus. Quando uma criança é batizada, ela o é para dentro do nome de Jesus. Em vários desses exemplos, encontramos o uso bíblico do “nome” como significando a pessoa. Ao mesmo tempo, o poder que é atribuído à pessoa é também atribuído a seu nome.

3. Texto de Gênesis 17.1-13

Não bastassem as diferenças isagógicas significativas no estilo e no vocabulário, há também um contraste marcante entre a narrativa viva do cap. 15, com sua ênfase na fé de Abrão (especialmente a famosa passagem “paulina” no v. 16), e o relato sistemático e estruturado do cap. 17, destacando o ritual da circuncisão.

O cap. 15 fixou o esquema básico da graça e da fé correspondente. Nada se pede a Abrão senão que creia e confie. No cap. 17, surgem as implicações em profundidade e extensão. Dessa forma, os capítulos 15 e 17 divulgam a participação individual e coletiva, a fé interior e o sinal externo, a salvação imputada e a devoção expressa.

Vv. 1-2: Treze anos passaram desde o nascimento de Ismael. Abrão é um homem impaciente. Para ele, como para nós, “promessa é dívida”. Nessa tensão entre promessa e cumprimento, a fé precisa ser fortalecida. A manifestação divina é significativa, e o nome especial de cada integrante na aliança assinala a ocasião (vv. 1 e 5). El Shadday, antes de um nome, é um atributo de Yahweh. Há diferentes sugestões de tradução, e um consenso parece ainda estar longe. O atributo aparece 31 vezes no livro de Jó e 13 vezes no resto da Bíblia. O contexto em que ocorre evidencia a ênfase no poder da ação divina em contraste com a fragilidade do ser humano. Em Gênesis, El Shadday ocorre em momentos em que os servos e servas de Deus estão deprimidos e necessitados de restabelecimento da certeza (cf. 17.1; 28.3; 35.11; 43.14; 48.3; 49.25). Por isso, a tradução “Todo-poderoso” (ARA) parece bem adequada, expressando também o sentido que a LXX quer dar ao traduzir a expressão por Pantokrátor.

A fragilidade de Abrão está no fato de que ele e Sara tentaram agilizar o cumprimento da promessa, utilizando a serva Agar. A narrativa deixa claro que, se Abrão deseja receber os benefícios da promessa e da aliança de Deus, ele deve permanecer um servo fiel de Deus. A sua fé deve, como diz a leitura de hoje, vir acompanhada da “obediência por fé” (Rm 1.5).

Como sugere Ross, os dois imperativos “anda” e “sê perfeito” podem ser interpretados seqüencialmente (como os imperativos em 12.1-3): “Anda na minha presença para que sejas perfeito” (Ross, p. 330).

A aliança (“minha aliança”, como traz o hebraico) já havia sido estabelecida bem antes (karat berît – Gn 15.18). Agora, portanto, essa aliança de Deus com o patriarca tornar-se-ia operativa (natan berît – v. 2). A fé de Abrão fora testada. Humanamente, não se podia esperar que Sara, com tal idade avançada, ainda pudesse ter filhos. Se a promessa deve ser cumprida, ela só o será pela intervenção poderosa de Deus. O que resta a Abrão é apenas esperar e confiar.

V. 3: Abrão espera, crê e cultua. Deste ponto da narrativa até o final do capítulo, o título ’elohîm, o Deus Criador, será empregado com referência a Deus. O Deus Criador está prestes a realizar a obra criadora, ao capacitar Sara a dar à luz.

Vv. 4-8: estes vv. descrevem a ação de Deus no processo da aliança. A atuação divina distingue-se da participação de Abrão, descrita nos vv. 9-13. O enfático “eu” (’anî), no início do v. 4 apresenta o propósito de Deus e contrasta com a atuação de Abrão, introduzida por um enfático “tu” (’attah) no v. 9. Ao tornar sua aliança operativa, Yahweh dá a Abrão um sinal pessoal: a mudança do nome do patriarca para “Abraão” (vv. 4-6). A mudança do nome é um voto, um selo de Deus à sua promessa. “Abrão” era um nome semítico ocidental, formado por dois elementos: ’ab (“pai”) e ram (“enaltecido”). Neste caso, o elemento ram provavelmente referia-se a Terá, pois Abrão ainda não era pai. O nome poderia significar: “Ele é enaltecido no que respeita ao pai”, ou seja, era de linhagem distinta e de nobre nascimento. O novo nome – “Abraão” – seria um lembrete perpétuo da promessa de que o patriarca seria ’ab-hamôn, “pai de multidões”. O foco muda de uma linhagem distinta para uma progênie antecipada, de um passado existencial autocentrado para uma vida focalizada na dependência divina. Yahweh promete não apenas um filho a Abraão e Sara, mas também reis que procederiam deles.

A expressão “estabelecerei a minha aliança” (v. 7) é melhor traduzida por “manterei a minha aliança”. Uma aliança é “perpétua” (‘ôlam), na perspectiva de Deus (cf. vv. 13, 19), mas possível de ser descumprida pela participação do ser humano (v. 14; cf. Is 24.5; Jr 31.32). O mesmo ocorre com a “possessão perpétua” da terra (v. 8). Esta, embora uma posse perpétua dada por Deus, poderia ser perdida em vista da desobediência e falta de fé do ser humano (cf. Dt 28.62-63; 30.1-10).

V. 9-14: A segunda parte discurso de Deus descreve as instruções de Yahweh com relação à circuncisão, o sinal da aliança abraâmica. Circuncisão não era novidade no Antigo Testamento. Fora de Israel, entretanto, ela era feita geralmente na puberdade e significava um rito de passagem dessa faixa etária para a vida adulta ou, então, antes do casamento para vincular o jovem ao mundo espiritual, à sua família e à comunidade. Outras interpretações incluem medicina higiênica preventiva e vestígios de sacrifício humano. Nesta última, acreditava-se que os deuses abençoariam o sacrifício do prepúcio com frutificação.

Exteriormente, a circuncisão praticada com Abraão, e de resto com todo o Israel, não é diferente da praticada pelas nações. Funcionalmente, contudo, há diferenças marcantes. Deus escolhe esse rito da cultura da época, mas o rebatiza, dando-lhe um novo significado. Aqui, como em todo o Israel de Deus, a circuncisão é realizada logo após o nascimento e não na puberdade. Pelo que se sabe, não há nenhuma referência à circuncisão infantil fora da Bíblia.

Gênesis 17 mostra que a circuncisão, acima de qualquer outra coisa, era um sinal da escolha que Deus fazia de Abraão e seus descendentes. Não era sinal de identidade familiar, racial ou nacional; era antes um sinal do amor de Deus. Era um selo da aliança, depois tantas vezes sumariada na fórmula: “Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo”.

Como todos os sinais, a circuncisão poderia facilmente tornar-se um sinal vazio. Tinha de estar acoplada à fé para ter sentido genuíno e integrar o indivíduo na “descendência espiritual” de Abraão. A Torá anuncia que Deus circuncidaria o coração do povo de forma que este o amasse (Dt 30.6). No Novo Testamento, Paulo diz que apenas a circuncisão do coração agrada a Deus (Rm 2.18-29). Em ambos os Testamentos, o verdadeiro selo da comunhão com Deus é a “circuncisão do coração”.

A expressão “todo o macho” (v. 10) é relevante. Por um lado, não admite exceção quanto aos homens e, por outro, isenta as mulheres da circuncisão feminina, praticada em determinadas culturas antigas e modernas (cf. Winter, p. 78-83).

4. Sugestões homiléticas

1. “Janeiro” está conectado a Janus, divindade romana que supostamente tinha duas faces. Uma olhava para trás; a outra, para frente. (Precisa-se de muita paciência para tratar com um sujeito de duas faces...) Ao trabalhar o texto, a pregação pode partir do contexto civil (como evitá-lo?) para olhar para o passado e para o futuro. Olhar para o passado e assegurar o perdão de Deus pela fragilidade, impaciência, desconfiança em relação a ele; e olhar para o futuro com a certeza do cumprimento das promessas de Deus em Jesus.

2. A Igreja tem mais a celebrar do que apenas o início de um novo ano. De forma especial, hoje nos regozijamos porque no oitavo dia após seu nascimento aquele bebê derramou o seu sangue pela primeira vez, inaugurando a trajetória salvífica por nós e que culmina no domingo da Páscoa.

3. Como em Abraão, na circuncisão de seu Filho, Deus “muda” o nome para “Jesus”, confirmando a sua promessa de perdão. Neste nome somos envolvidos por ocasião do Batismo e cobertos com o manto da sua justiça.

4. Em meio às dificuldades, frustrações e falta de perspectiva, muitas vezes é oportuno lembrar que Deus “mudou” o nosso nome no Batismo – somos chamados “cristãos” – como selo da sua promessa. No Batismo, Deus “estabelece” e “mantém” a sua aliança conosco. Ao Batismo sempre retornamos porque nele está a certeza da aliança perpétua de Deus conosco. Uma sugestão de tema para a pregação poderia ser: as promessas seladas pela aliança de Deus conosco asseguram-nos um abençoado ano novo.

Bibliografia

JUST, Arthur A, Jr. Luke 1:1-9:50. In: Concordia Commentary : A Theological Exposition of Sacred Scriptures. St. Louis : Concordia, 1996.
ROSS, Allen P. Creation and Blessing : A Guide to the Study and Exposition of the Book of Genesis. Grand Rapids, MI : Baker Book House, 1990.
WINTER, Richard. Cutting and Washing : Cincuncision and Baptism – Highly Appropriate Symbols in Our Erotic Culture. Presbyterion, St. Louis, v. 26, n. 2, p. 67-83, 2000.

 

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Ano Novo

Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 13
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2001 / Volume: 27
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 6935
REDE DE RECURSOS
+
A vida cristã não consiste em sermos piedosos, mas em nos tornarmos piedosos. Não em sermos saudáveis, mas em sermos curados. Não importa o ser, mas o tornar-se. A vida cristã não é descanso, mas um constante exercitar-se.
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br