João 17.9-19

04/06/2000

Prédica: João 17.9-19
Leituras: Atos 1.15-26 e 1 João 4.13-21
Autor: Ivoni Richter Reimer
Data Litúrgica: 7° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 04/06/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Páscoa

 

1. Introduzindo...

O Evangelho conforme João tem algumas características que lhe são peculiares. Entre elas está o fato de que, em João, os discursos de Jesus compõem grandes e bem estruturadas unidades temáticas que podem subsistir de forma independente. É o caso dos Discursos de Despedida de Jesus, inseridos no contexto da Última Ceia (Jo 13-17). Um desses é a Oração Sacerdotal de Jesus, à qual pertence a nossa perícope.

Esses discursos são caracterizados pela argumentação meditativa, que se movimenta de forma concêntrica em torno de alguns termos-chave para a com¬preensão do texto todo. Não temos, portanto, um núcleo, mas vários. Todos são relevantes para a mensagem do texto. Todos são importantes para compreender a missão de Jesus e a situação da comunidade joanina.

O autor ou o grupo de mulheres e homens que redigiu o Evangelho conforme João não pertence mais ao grupo de testemunhas oculares, e por isso depende de tradições orais e escritas. Estas, então, foram reunidas, selecionadas e organizadas nesse evangelho, escrito no final do séc. l, ou início do séc. 2, na Ásia Menor (talvez Éfeso) ou na Síria. Encontramo-nos no período do imperador Domiciano, no qual as comunidades cristãs sofriam perseguições. A perseguição foi uma forma que o mundo encontrou para demonstrar o seu ódio em relação a crianças, mulheres e homens que crêem em Jesus Cristo. Sobre o significado de mundo, veremos mais adiante.

A reflexão teológica do evangelho é muito rica. O evangelho não se além ao passado — apesar de este ser sua base —, mas faz teologia para dentro do seu presente. Por isso, não está tão preocupado em mostrar quem era o Jesus histórico, mas em refletir a importância, o significado e a presença desse Jesus junto à comunidade, hoje.

A comunidade joanina vive em contexto sincretista, no qual estão presentes aspectos do pensamento judaico, helênico e gnóstico. Ela precisa, em diálogo e distanciamento, afirmar sua fé de forma clara e autêntica. Dentro desse contexto, no Evangelho de João se manifesta uma comunidade que não tem poder político e social, é oprimida pelo mundo em que vive e, ainda assim, desmascara-lhe a mentira. Ao contrário do que pretende e alega, o mundo não pode oferecer o pão da vida, a verdade e o caminho, ou seja, a vida verdadeira (Gottfried Brakemeier, p. 13).

Uma das questões cruciais que perpassa esse evangelho é a compreensão do mundo e a relação com ele. Diferentemente da concepção gnóstica, o Evangelho conforme João afirma a existência, a permanência e a atuação da pessoa cristã no mundo, porque o mundo é criação de Deus, apesar de nele estarem agindo forças do mal. A comunidade cristã não pode querer entregar o mundo nas mãos das estruturas de morte, opostas ao poder criador de Deus, mas, em reconhecendo o poder do pecado que se manifesta no mundo, ela precisa lutar para reclamá-lo e resgatá-lo de volta como sendo propriedade de Deus! É nesse mundo que Deus se revela, e é nele que a comunidade cristã é convidada a testemunhar e atuar, a fim de transformar esse mundo num espaço não mais dominado pelo ódio, mas pela palavra de Deus marcada pelo amor.

Assim como a missão de Jesus consiste em revelar Deus Pai e Mãe para dentro das realidades deste mundo, a missão da comunidade cristã está em articular sua fé nesse Deus como testemunho da vida nova em Cristo em meio às realidades deste mundo. O Evangelho conforme João testemunha que a fé não é algo estático nem estagnado, mas é um processo dinâmico, uma atitude viva, sujeita a mudanças.

2. Aprofundando...

Chama a atenção o fato de que o texto de Jo 17.9-19 repete insistentemente algumas palavras-chave, construindo uma argumentação concêntrica em relação a elas. Trata-se de nome (vv. 11,12), palavra (vv. 14,17) e mundo (vv 911 [2 x] 13,14 [3 x], 15,16 [2 x], 18 [2 x]).

Ao lado dessas palavras-chave, existe um grupo de outros termos que se colocam relacionalmente em função delas. Trata-se de guardar (vv. 11,12,15), enviar (v. 18 [2 x]), santificar (vv. 17,19 [2 x]), odiar (v. 14). A relação básica que se estabelece em relação ao mundo é enviar, em relação ao nome é guardar, e a Palavra dada aos discípulos e discípulas é a verdade que santifica. A Palavra dada faz o mundo odiar essa comunidade. O objetivo dessa trama de relações é que a comunidade de discípulos e discípulas seja una, assim como o Pai e o Filho o são (17.11, final). O objetivo é a nossa unidade e a nossa comunhão.

Essas relações básicas devem ser aprofundadas a partir do estudo das palavras-chave. Vejamos:

Guarda-os em teu NOME que me deste (17.11)

O nome (ónoma) é o argumento da unidade entre o Pai e o Filho, e sua função é guardar e proteger a comunidade de fé, para que ela seja una, e não se perca (17.11-12). Jesus manifestou e deu a conhecer esse nome durante a sua vida (17.1); 17.25). Que nome é esse que Jesus recebeu de Deus?

O nome que Jesus recebeu de Deus e que foi revelado por ele era cantado por comunidades cristãs. Assim o temos expresso no hino cristológico de Fp 2.9-11: Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai!

Em Jesus de Nazaré, Deus revelou o seu nome. Em toda a sua vida e na sua morte e ressurreição, Jesus revelou o nome de Deus. Quem me vê, vê o Pai (14.9). É por isso que Jesus pode autonomear-se EU SOU... (8.28,58). Isso coloca uma profunda relação com o Deus que se manifesta na libertação do povo escravizado no Egito (Êx 3.13-14). Essa autonomeação coloca Jesus na história do êxodo. Portanto, o NOME revelado em Jesus é o próprio nome de Deus que, em Jesus, mais uma vez e definitivamente dá a conhecer o seu nome: Deus que está ao lado das pessoas excluídas, escravizadas, oprimidas, perseguidas, desesperançadas... É o nome que se revela para fazer nascer e crescer processos de libertação!

Guarda-os nesse nome para que não se percam... O processo de libertação começado e realizado em Cristo não deve ser substituído, largado, trocado por outros. Não deve ceder frente a desafios e pressões, perseguições, tentações, medos e especulações... também de fim de milénio. Para que permaneça firme, é necessário que Deus mesmo guarde a sua comunidade de fé, a proteja contra todo o mal e seus mecanismos.

Na sua oração, Jesus intercede junto a Deus para que guarde os seus filhos e suas filhas, ou seja, aqueles e aquelas que crêem em seu nome (1.12) manifestado na história através de Jesus de Nazaré. Sendo filhos e filhas através da fé é que nós participamos da unidade existente entre o Pai e o Filho; tomamos parte da comunhão! Essa comunhão se mostra forte na perseguição, na cruz, nos processos em busca de libertação. É na cruz e no êxodo que Deus manifesta com todo o poder e misericórdia o seu nome; é lá que todas as pessoas podem reconhecer quem é Deus: um Deus que tem compaixão, que sofre junto para, a partir daí, criar nova possibilidade de vida. É nesse nome que estão fundamentadas a nossa unidade e a nossa comunhão.

Manter a unidade no NOME de Deus é trilhar com Deus os seus caminhos de êxodo e de cruz, participando de processos libertadores em meio às realidades de nosso mundo.

O fato de Jesus interceder junto a Deus em favor de seus discípulos e discípulas deveria nos encher de ânimo e de coragem para viver nossa lê r testemunhar o amor de Deus em Cristo Jesus.

Eu lhes dei a tua PALAVRA... (17.14)

A Palavra é o lógos que nos faz lembrar de Jo 1.14: e o Verbo se fez carne... Na boca de Jesus, lhes dar a tua palavra é dar-se a si mesmo, é ser a própria Palavra de Deus. Manifestar a Palavra de Deus é comunicar a sua vontade. E isso aconteceu em plenitude através de Jesus (4.34; 6.38; 7.16; 14.24; 15.15). Assim, acolher a Palavra é acolher a Jesus Cristo (17.6-8).

A Palavra que Deus deu a conhecer em Jesus manifestou-se como luz (8.12), como vida (6.63; 10.10; 11.25), como verdade e libertação (8.31-32; 17.17), como pão e água da vida (6.35; 7.38). Na sua vida, Jesus revelou a palavra de Deus, porque ele é a Palavra encarnada. Não há dissonância entre Pai e Filho. Formam urna unidade; têm comunhão profunda: todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas (17.10). Assim, os discípulos e as discípulas de Jesus são de Deus. A comunidade cristã pertence a Deus, na unidade de Pai e Filho. Portanto, fazemos parte dessa comunhão.

Assim como Jesus, sendo Palavra, guardou a palavra de Deus, também a sua comunidade recebe e guarda a Palavra (17.6-8). Isso significa assumir e viver o projeto de Jesus. Isso requer amor. Amar é guardar a Palavra. Somente assim o Pai e o Filho estabelecem morada em e entre nós (14.23). Aceitar e assumir o projeto de Deus é consagrar a vida ao serviço do reino de Deus, na prática da verdade (17.17), na vivência da palavra de Deus.

... e o MUNDO os odiou... (17.14)

Toda a temática a respeito do mundo (kósmos) parte do pressuposto da distinção entre mundo e comunidade de discípulos e discípulas. Não há compatibilidade entre mundo e discipulado de Cristo, porque o mundo não reconhece nem confessa o NOME nem acolhe a PALAVRA. Mas que mundo é esse?

O Evangelho conforme João fala negativamente de mundo para caracterizar todas as pessoas que não reconhecem nem professam o nome e o senhorio de Jesus Cristo. O mundo professa seu próprio nome e sua própria palavra, ele se rege pela sua própria lógica. O mundo de Deus e o mundo do mundo, portanto, são modos distintos de pensar, viver e reger. São dois projetos distintos, entre os quais há oposição. Por isso Jesus não intercede pelo mundo, mas pelas pessoas que acolheram a Palavra e creram em Cristo (17.8-9).

O nosso texto, no entanto, também fala do mundo de uma forma que englobe a comunidade cristã numa relação de serviço. Jesus constata que seus discípulos e discípulas continuam no mundo (17.11). Essa frase não se refere ao mundo que se encontra em oposição a Deus, mas ao mundo como um todo criado por Deus. É o espaço dentro do qual vivemos e nos movemos. É onde habitamos. É nesse mundo que podemos e devemos fazer uso livre, positivo e responsável de estruturas e recursos disponíveis no mundo (veja o estudo de Gerd Uwe Kliewer).

Dentro desse mundo criado por Deus existem pessoas que aderem ao projeto de Deus e outras que não aceitam nem reconhecem o senhorio de Jesus Cristo. A Palavra de Deus encarnada faz o mundo mostrar sua verdadeira face: o mundo os odiou. Esse ódio muitas vezes se manifestou na história em forma de perseguição e desprezo. Afinal, as discípulas e os discípulos não são tio inundo, como eu também não sou do mundo (17.14).

Essa afirmação é repetida em 17.16. Isso não significa que a comunidade cristã deva se afastar do mundo, criar um mundo fechado, viver no isolamento. Não, isso apenas está atestando que existem dois projetos contraditórios: um de vida e outro de morte. Jesus diz: Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal (17.15). Também aqui Jesus intercede para que Deus proteja sua comunidade. E mais uma vez fica claro que não dá para compactuar com esse mundo que odeia os discípulos e as discípulas, pois ele já está julgado através de seu maioral (16.11). E, por seu lado, os discípulos c as discípulas de Jesus estão comprometidos com o projeto de Jesus e devem estar a seu serviço.

Sim, nós vivemos nesse mundo criado por Deus, marcado por todas as relações humanas, a organização social e cultural, o sistema político e econômico (Werner Fuchs, p. 156), mas não somos do mundo. Não somos propriedade do mundo. O mundo não é nosso dono. Nós somos livres! Porque perten¬cemos a Deus. E exatamente por pertencermos a Deus, queremos servi-lo com alegria, e estaremos empenhados e empenhadas na missão que Jesus inaugurou: Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo (17.16). Somos pessoas enviadas ao mundo para testemunhar o amor de Deus, mesmo que o mundo nos odeie. O objetivo é a transformação do mundo, não a conivência nem a subserviência. Nisso, temos que ter cuidado para manter um bom equilíbrio no investimento de nossas forças e de nosso tempo, para não nos desgastarmos com sepulcros caiados e corações endurecidos. Afinal, esses nem Jesus conseguiu converter...

A Palavra que dá ânimo e alegria para o serviço

Quanto mais lemos Jo 17.9-19, tanto mais riquezas aparecem. Existem várias afirmações de Jesus que podem aprofundar a reflexão em torno das três palavras-chave do texto. Quais são, por exemplo, as palavras indicativas de Jesus para nós, enquanto comunidade de discípulas e discípulos?

Jesus intercede por nós e afirma que pertencemos a Deus e que em nós é glorificado (17.9-10). Como acontece isso? Quando produzimos muitos e bons frutos (15.8), testemunhando a nosso Senhor.

Jesus intercede por nós para que, vivendo no mundo, sejamos protegidos por Deus para participarmos da comunhão com o Pai e com o Filho (17.11).

Jesus intercede por nós para que tenhamos a sua alegria (chára) plenificada em nós mesmos (17.13). Aqui é importante lembrar que, no grego, a alegria tem a mesma raiz da graça e que significa a plenitude da paz.

Jesus intercede por nós para que, permanecendo no mundo, Deus nos guarde do mal e nos santifique na sua verdade que é a Palavra encarnada (17.15,17,19). A santificação é a consagração ao serviço a Deus, a dedicação ao exclusivo projeto de Deus em meio a esse mundo para a sua salvação.

Muitas são as palavras indicativas de Jesus em relação a nós. Somente unia palavra se expressa como imperativa para nós: Jesus nos enviou ao mundo, assim como Deus o enviou (17.18). Isso significa que, no nosso ser e agir, devemos olhar constantemente para a vida e o ministério de Jesus, andando em seus caminhos, para que ele seja glorificado em nós.

3. Celebrando...

O objetivo da intercessão de Jesus é a unidade e a comunhão das pessoas cristãs. Trabalhamos isso na Semana Nacional de Oração pela Unidade dos Cristãos. As leituras bíblicas para o dia podem ser canalizadas no sentido de que as pessoas cristãs são enviadas para o serviço a Deus, testemunhando e vivendo o seu amor.

A pregação pode abordar as partes refletidas nesse estudo, ressaltando a importância das três palavras-chave para nossa vida de fé em meio a este mundo. Para isso é imprescindível localizar, no início, a comunidade joanina e a comunidade na qual acontece a pregação. '

Procurar trabalhar essas palavras-chave com grupos da comunidade. Os resultados podem ser apresentados e refletidos durante o culto.

Para animar a comunidade na sua missão no mundo, ressaltar o indicativo expresso na intercessão de Jesus por nós.

Seleção de bibliografia

BRAKEMEIER, G. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1982. vol. VIII, p. 9-15.
BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. Göttingen, 1959. (Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament).
FUCHS, W. Auxílio homilético sobre João 17,9-19. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1993. vol. XIX, p. 153-157.
KLIEWER, G. U. Enviados ao mundo... João 17,9-19. In: Proclamar Libertação. São
Leopoldo : Sinodal, 1979. vol. IV, p. 33-37.
RUBEAUX, F. As raízes do quarto Evangelho. RIBLA, n. 22, p. 60-72, 1995.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia
 


Autor(a): Ivoni Richter Reimer
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 7º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 17 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 19
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12817
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