João 3.1-17

Auxílio Homilético

25/05/1997

Prédica: João 3.1-17
Leituras: Deuteronômio 6.4-9 e Romanos 8.14-17
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 1º Domingo após Pentecostes ( Trindade)
Data da Pregação: 25/05/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII


1. Considerações Gerais

Pobre Nicodemos: seu nome e sua pessoa não foram poupados e muitas vezes seu nome e seu papel foram lidos a partir de preconceitos explícitos ou não. Quantas vezes ele terá sido apresentado como um covarde, que usa a noite para encobrir o seu encontro com Jesus? Ou como um incrédulo sem cura? Na propaganda nazista ele foi apresentado como o judeu típico que é contra Jesus; já para setores do espiritismo ele é o exemplo bíblico que comprova a reencarnação.

O diálogo de Nicodemos com Jesus é denso, desenvolvendo-se com ajuda de diversos quadros. Por isso mesmo, uma das propostas de divisão da perícope é ficar nos vv. 1-8, buscando explorar bem o seu conteúdo, sem sobrecarregar a pregação. Darei ênfase a esses primeiros versículos, sem, por isso, ignorar o restante do texto.

2. O Texto

Vv. l e 2: Nicodemos é descrito como um notável (Bíblia de Jerusalém), que se dirige a Jesus à noite a fim de ter um diálogo, quase que como com um colega também notável. Ora, palavras e feitos de Jesus lhe tinham chegado aos ouvidos e nem ele e nem outros fariseus punham em dúvida que Jesus o fazia no poder de Deus. Nada de colocar Jesus à prova, o que aconteceu em tantas outras vezes; nenhum sinal de uma armadilha bem tramada: Nicodemos quer conhecer de perto e pessoalmente esse Jesus, cujas palavras e feitos são comentados. Entre os rabinos a noite era recomendada para o estudo, e o fato de Nicodemos procurar Jesus à noite mostra, ainda, a sua determinação. Mas não há traço de covardia ou medo de ser flagrado conversando com Jesus. O verbo no plural logo no início da fala de Nicodemos não indica que outros tenham ido com ele, mas é uma forma comum de falar. Além disso, Nicodemos poderia estar dizendo ainda que as perguntas que queria fazer também eram perguntas dos seus colegas fariseus.

V. 3: O tema é o reino de Deus, assunto corrente também entre os judeus, embora Nicodemos não o diga explicitamente. Mas é certo que ele não queria apenas matar a curiosidade. Com um rabi, que reconhecidamente vem de Deus, a gente conversa sobre questões de vida ou morte, e esta é a questão em torno do reino de Deus e a participação nele. Aliás, somente neste versículo e no v. 5 aparece este conceito em João, ao passo que é corrente nos sinóticos. João, por sua vez, usa a designação vida ou vida eterna como termo correspondente. A resposta de Jesus é enfática, caracterizada pelo amen, amen. Em outras palavras, Jesus não está pondo o assunto em discussão para, no final, tirar uma conclusão. Muito pelo contrário: suas palavras têm caráter definitivo! Nascer de novo, nascer lá do alto são formas de expressar a radicalidade do extra nos (o que vem de fora de nós), pois assim como no nascer natural a gente é antes agente passivo, também o novo nascimento é dádiva, é graça.

V. 4: Não é de admirar que alguém acostumado a pensar e a viver a partir da lei, que sempre carrega em seu bojo a ideia do cumprimento por esforço próprio e de uma compensação decorrente deste, compreenda as palavras ao pé da letra e as tenha como completo exagero e absurdo. Mesmo assim ele não interrompe o diálogo, mas manifesta a sua surpresa em forma de uma pergunta. Parece-me que Nicodemos formula a pergunta muito mais a partir da surpresa do que por qualquer tentativa de, eventualmente, levar Jesus ad absurdum, expediente usado muitas vezes contra Jesus (cf. Lc 11.14s.; Mt 22.15s. e outros).

V. 5: Jesus, agora, diz como acontece o novo nascimento, o nascer do alto: pela água e pelo Espírito, não pelo esforço humano, não pelo uso de determinado método, dois elementos que sempre estão presentes até hoje nas igrejas; faz bem ao ego poder dizer que a gente se converteu, e não poucos pregadores ficaram famosos por terem um método eficaz, resumido em alguns pontos, para o nascer de novo! A água (Batismo) e o Espírito são dados e não conquistados. Com isso se reafirma que o ser humano é absolutamente incapaz de chegar a Deus por sua própria razão ou força (Lutero), mas que depende tanto do próprio Deus como uma criança depende de outros para nascer e para sobreviver.

Vv. 6 e 7: Aqui temos uma típica forma joanina de argumentar através da contraposição. A carne é o ser humano como ele é, com suas virtudes e com seus erros, é o ser humano marcado pelo pecado. E ele está inserido num mundo que foi arrastado junto pelo ser humano para a desgraça do pecado; quer dizer, ele está vinculado irremediavelmente ao mundo. Carne não pode entrar no reino de Deus, ainda que fizesse todo o esforço. Mas o que vem do Espírito, o que nasce do Espírito, o que é agraciado por Deus através do Espírito, este, sim, é herdeiro, porque Deus veio a ele, porque Deus fez com ele nascesse de novo.

V. 8: Nicodemos iniciara o seu encontro com Jesus dizendo conhecê-lo. Seguindo este raciocínio, conhecê-lo melhor poderia ser uma forma mais perfeita c completa de fé e religiosidade. A parábola do vento, porém, corta radicalmente essa possibilidade: assim como o vento está aí, por assim dizer, acontece, da mesma maneira o Espírito de Deus irrompe e só pode ser identificado por seu resultado, i. é, porque pessoas começam a viver como que nascidas de novo, e isso não graças ao seu esforço, a uma predisposição especial, mas pura e simplesmente porque o próprio Deus fez nascer de novo. A realidade de Deus foge de qualquer objetivação, ela só pode ser sentida e vivida, mas no momento em que isso acontece a pessoa já está envolvida, enredada!

Sem dúvida é possível ao ser humano resistir ou fugir (para onde?) à ação de Deus, e a história dos cristãos, quer individual, quer comunitariamente, é um vaivém entre fé e descrença, mas isso não invalida a ação de Deus no Espírito Santo.

3. Em direção da Prédica

O ser humano faz perguntas, até se poderia dizer que ele é uma pergunta só: perguntas pela vida, perguntas em relação ao futuro (próximo ou distante), perguntas por seu papel neste mundo, perguntas pelo sentido da vida se a morte é certa... perguntas, perguntas. Ele não faz as perguntas apenas para matar a sua curiosidade (Nicodemos também não era apenas curioso!), mas as faz porque elas brotam do seu ser, porque ele busca uma existência com algum sentido. No meio dessas perguntas está também a pergunta pelo depois, a pergunta pela religião, a eventual pergunta por um Deus. Se para muitas das nossas perguntas há respostas um tanto quanto lógicas, isso não acontece em questões de religião, e o nosso texto o mostra de forma clássica. A resposta bíblica à pergunta pela religião foge à lógica, é totaliter aliter (absolutamente diferente do que pensamos), porque extra nos. Nós podemos, no máximo, ficar fugindo, resistindo, nos opondo à ação de Deus, nos negando a ele, a partir de nossa lógica, a partir da carne. Não é por menos que Lutero vê na filosofia e no filosofar (em se tratando de questões de fé) uma pura e simples perversão. Mas em meio à toda a negação, apesar de toda a nossa resistência, o Espírito (assim como o vento) continua soprando e fazendo gente nascer de novo. O reino de Deus não é comprável, nem com ouro nem com prata, nem com inteligência e muita sabedoria, mas ele é presente, dádiva do próprio Deus. Estar nesse reino é começar da frente, é entrar de mãos abanando, é recomeçar, em bem outra direção. O Batismo é um sinal concreto desse começar de novo, pois nele é afogado e morto o velho Adão e, por sua vez, ressurge o novo ser humano'' (Lutero).

Uma prédica sobre este texto poderia começar com a descrição de Nicodemos, que procura, que está preocupado com o reino de Deus e sua própria pertença a ele. Em seguida se poderia mostrar à comunidade que Jesus é sensível à pergunta, para então mostrar que a resposta dele é bem outra, que ela íoge da lógica, porque remete a pessoa a um novo início realizado e concretizado por Deus e não pelos seres humanos.

Exemplos de que Deus chama — tantas vezes de forma indiscutível! - podem ser encontrados na própria Bíblia: Jeremias que tentou resistir, Jonas que tentou fugir, Pedro que logo seguiu para tantas vezes negar, o próprio Paulo. Podem ser lembradas pessoas que na história humana foram marcantes a partir de sua fé e porque Deus foi mais forte do que a sua resistência (quem sabe, ler a reflexão que Bonhoeffer faz sob o título Quem sou eu?).

Para chegar bem perto da comunidade, lembrar o Batismo de cada um/a e a fé que é dom de Deus. Lembrar a nossa resistência a Deus no dia-a-dia e como Igreja, mas buscar também exemplos concretos do ouvir e seguir o chamado. Finalmente, sublinhar que o Espírito de Deus continua soprando... basta não resistirmos; que Deus está longe de se ter retirado e afastado do mundo. Uma frase do Glaubensbuch (Livro da Fé) das igrejas da ex-Alemanha Oriental resume a presença e ação de Deus assim: ' 'Ele [Deus] se mostra como Pai a quem devemos a nossa existência e a existência do mundo; ele vem a nós como Filho; ele se tornou gente e se expôs aos perigos e às cargas de nossa vida, para fazer-nos novas pessoas. Ele age em nosso meio como Espírito Santo, na medida em que nos dá a oportunidade de reconhecê-lo, com ele viver e em seu nome agir'' (ap. Hild, p. 270).

4. Sugestões para a Liturgia

1. Usar hinos de Pentecostes (Hinos do Povo de Deus [HPD] e/ou O Povo Canta).

2. Usar o hino 150 (HPD) como confissão de pecados.

3. Se possível usar uma forma nova de confessar a fé (sugestões em Karl-Heinz Bieritz & Michael Ulrich, eds., Gottesdienstgestaltung; ein ökumenisches Werkbuch, 1985, p. 267ss.).

4. Nas intercessões lembrar a divisão da Igreja e a divisão do mundo, pedindo pela presença do Espírito a fim de que sejamos capazes de mudar situações. Pedir que sejamos lembrados do nosso próprio Batismo, para que não resistamos à ação do Espírito Santo, mas nos deixemos enviar como emissários do reino de Deus. As intercessões podem ser intercaladas por algum Kyríe (O Povo Canta, ns 176, 177 e 271, p. ex.)

5. Bibliografia

BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. 10. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
HILD, H. Meditação sobre João 3.1-8(9-15). Göttinger Predigt-Meditationen, 45(3):264-270, 1991.
MARCEL MARTIN, G. Meditação sobre João 3.1-8(9-15). In: HÄRTLING, P., ed. Textspuren. Stuttgart, Radius, 1990. vol. l, p. 153-155.
VOIGT, G. Meditação sobre João 3.1-8(9-15). In: —. Der schmale Weg. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1973. p. 292-296.


Autor(a): Harald Malschitzky
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14557
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