Um credo para nossa época: Existe isso?

10/08/1972

UM CREDO PARA NOSSA ÉPOCA: EXISTE ISSO?

O falar da Igreja nunca pode ser neutro. Os antigos e já clássicos credos e formulações similares da fé cristã são o atestado mais indiscutível desse fato. Aquilo que popularmente ficou conhecido como breve resumo da fé teve antecedentes bem mais movimentados do que se pode supor pelo texto lido hoje! Cada palavra esta prenhe de significados polêmicos.

O conhecido teólogo suíço Lukas Vischer dedica-se, no momento, a uma tarefa simultaneamente fascinante e embaraçosa: levantamento e coleta de todas as formulações da fé cristã, de todas as épocas, igrejas e lugares. A etapa seguinte da pesquisa é evidente: verificar a concordância e as disparidades, descobrir quais fatores concorreram para uma e outras, estabelecer as consequências do todo na história e procurar a viabilidade de síntese. O último item provocará sérias dúvidas em alguns. Parece-me que a mais importante é esta: será a síntese a tarefa mais urgente de nossa geração? 

O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL 

Qualquer comunidade que se compreende como Igreja de Jesus Cristo precisa falar, precisa expressar e possuir a combinação de palavras e experiências. Mesmo a assim chamada igreja do silêncio tem essa vivência: a designação, antes de tudo, representou uma metáfora, manipulada posteriormente por certa propaganda sempre ávida de slogans mentirosos. A necessidade inevitável de falar, no entanto, ainda deixa em aberto outra questão: que é que precisa ser dito? Justamente o problema do conteúdo é que tem resultado em todas as concordâncias e disparidades, na história. Porque o falar da Igreja é sempre confissão, profissão de fé, testemunho. Ora, o testemunho revela obrigatoriamente mais do que interesse por algo. O testemunho sempre implicará adesão, engajamento. Quando o indivíduo ou a comunidade dão testemunho de sua fé, estão expondo uma parte de si próprios, estão oferecendo algo da própria pessoa, da própria vida. Assim, a mera comunicação de um fato, diante do qual o comunicador poderia manter-se neutro, salvaguardando a própria objetividade, seria tudo menos testemunho. O falar da Igreja nunca pode ser neutro. 

Os antigos e já clássicos credos bem como formulações similares da fé cristã são o atestado mais indiscutível desse fato. O que popularmente ficou conhecido como breve resumo da fé teve antecedentes bem mais movimentados do que faria supor o texto lido hoje. A rigor, cada palavra está prenhe de significados polêmicos, cada vocábulo foi escolhido a partir da praxis e cada formulação depende de duas grandezas multiformes que necessitam constante reinterpretação: a Bíblia e os desafios de uma época. Vejamos o que isso significa mais precisamente. 

TESTEMUNHO COMO PROCESSO 

Dois aspectos básicos caracterizam a confissão de fé dos primitivos cristãos: a referência a Jesus de Nazaré e a concisão. Por exemplo: O Senhor é Jesus Cristo (1 Coríntios 12.3); Jesus é o Cristo (1 João 2.22); Jesus Cristo veio em pessoa (1 João 4.2). 

Tais formulações, é óbvio, pressupõem toda a longa história da fé de Israel. E seu caráter polêmico dificilmente poderia ser superado. Pois, de um lado, o título de Senhor só era admissível como referência a Deus; de outro, era contestada a pretensão do César romano, que exigia o título para si. O martírio de não poucos cristãos comprova, antes de mais nada, que esse credo comunicou muito bem e que foi perfeitamente entendido, em todas as suas implicações, por não cristãos. De resto, é indiscutível que nos defrontamos com certa reinterpretação do Antigo Testamento. No entanto, é importante ressaltar que, para os primeiros cristãos (que nem sequer tinham essa designação), bastou a vinculação do Nazareno a Javé. A elaboração de nova doutrina de Deus (de nova teologia!) pareceu desnecessária. Assim como a nascente comunidade cristã não revelou qualquer preocupação pela designação de seu grupo, limitando-se a adotar o vocábulo secular referente a qualquer reunião popular ou assembleia corporativa. 

Certos desafios da época provocaram gradativa ampliação dos credos primitivos. O paganismo foi um desses desafios e o testemunho acerca do Deus Criador, a resposta da Igreja primitiva. Resposta que retomaria a milenar fé de Israel, também expressa em desafio aos babilônios. Outro desafio representou a concepção antropológica que vê a alma como imortal e o corpo como mera prisão ou receptáculo desprezível. A resposta cristã a isso faz clara referência à ressurreição do corpo (ou da carne), reafirmando assim a responsabilidade pelo próprio corpo, pelas necessidades alheias e pelo mundo em geral. Sendo Deus quem ressuscita, o testemunho cristão nos informa que Deus leva a sério o homem todo, e que nesse fato se fundamenta a incomparável dignidade humana. Será preciso perder tempo, relembrando que consequências pode e deve ter esse credo? 

Na opinião de alguns, a referência ao Espirito Santo, no Credo, deve-se à prática do batismo, ocasião em que a profissão de fé era exigida. E o Espírito era considerado como dádiva e efeito do batismo. Assim, a liturgia, a disciplina e o próprio ambiente do Cristianismo primitivo foram suscitando fórmulas e provocando sucessivas modificações, acréscimos, elaborações novas. Em todo caso, ao contrário do que alguns continuam a sustentar, os credos pós-neotestamentários não resultaram de elaboração teológica orientada unicamente pelo texto bíblico. É bem verdade que refletem um conjunto de tendências teológicas que poderão ser localizadas, com maior ou menor evidência, no Novo Testamento. Mas suas fontes são diversificadas e variados os impulsos que conduziram ás formulações que hoje conhecemos e usamos. Mais diversas ainda se tornaram as interpretações dadas aos credos clássicos. Ficou célebre a explicação do Credo (dito) Apostólico que se encontra no Catecismo Menor de Martim Lutero: todos os fatos salvíficos objetivos foram transpostos para a esfera existencial do crente. Sob certo ponto de vista, trata-se de um novo credo, tanto no que se refere ao conteúdo como ao estilo. Se, e parece ser o caso, o Credo já se tornara ininteligível no século 16, que dizer da situação em nossos dias? 

Testemunhar, temos visto, não é apenas afirmar. É também viver o que se confessa. Por isso mesmo, nenhum credo poderá abstrair, por exemplo, da oração, do serviço, do amor. O credo não poderá ignorar as estruturas de vida. Nas palavras de Tielko Tilemann, mesmo que não houvesse igrejas e teólogos, permaneceriam as perguntas que precisam de resposta. Ora, todas as questões da vida estão relacionadas à fé e vice-versa. Pergunta-se: é possível professar a fé através de fórmulas que exigem o estudo de compêndios de história e dogmática para serem realmente compreendidas? Mais ainda: é possível dar um testemunho de fé diante dos desafios de nossa época, de nossa geração, usando formulações que refletem polêmicas de 17 ou 18 séculos atrás? Em resumo: é possível ignorar o longo processo histórico que conduziu a determinadas fórmulas (e que a elas sucedeu)? 

Diversos grupos, de variadas tendências teológicas, respondem a essas perguntas com um não unânime. Para eles, tornou-se candente a questão do testemunho hoje. E são de opinião que chegou o momento em que não é mais suficiente explicar e interpretar. Palavras e vivências mudaram e, portanto, será obrigatória a nova confissão de fé, o credo para a nossa época. Rudolf Bembenneck coloca a problemática da seguinte maneira: Nosso testemunho precisa tornar compreensíveis os efeitos e implicações da fé cristã diante de determinados problemas e situações contemporâneos. E postula um credo circunstancial em analogia à chamada ética circunstancial (ou situacional), considerando indispensável o concurso da sociologia, psicologia social, politologia e disciplinas afins. Em sua opinião, um credo hodierno precisaria reportar-se a questões como a da paz, das relações com Israel e o Judaísmo, do racismo, das bases do humanismo, etc. 

Como se vê, a questão do conteúdo permanece, mesmo num credo circunstancial, nascido dentro de determinada etapa do processo histórico, em determinado lugar. Mas o reconhecimento de que existe tal processo impede, pelo menos, que essa ou aquela fórmula se tornem absolutas, permanentes e imutáveis. 

O que segue é uma seleção de testemunhos modernos de fé. Os modelos foram escolhidos bastante ao acaso. O interesse maior reside em torná-los conhecidos, para que possam ser aproveitados como material de discussão e reflexão. As observações que acompanham cada modelo apontam alguns dos problemas teológicos latentes e não são, nem de longe, exaustivas. 

UM CREDO ESTADUNIDENSE 

O homem não está só,
pois vive no mundo de Deus.
Nós cremos em Deus:
que criou e continua criando,
que veio no verdadeiro Homem, Jesus,
para reconciliar e renovar,
o qual atua em nós e entre nós
por seu Espírito.
Nós confiamos nele.
Ele nos chama a ser sua Igreja:
para celebrar sua presença,
amar e servir aos outros,
desejar a justiça e resistir ao mal.
Nós proclamamos seu reino.
Na vida, na morte, na vida além da morte,
ele está conosco.
Nós não estamos sós;
nós cremos em Deus. 

A primeira constatação do credo parece refletir uma típica situação existencial-urbana: a solidão. Solidão e mundo, o individual e o global introduzem a fé em Deus, expressa em termos trinitários tradicionais. Toda a linguagem, aliás, é bastante bíblico-tradicional, o que levanta um imediato temor: compreenderá o homem moderno (e solitário) o que seja Espírito, reino, vida além da morte? Em outros momentos, a formulação é feliz. Por exemplo: a ênfase no processo de criação como algo que continua hoje. A solução de compromisso (em nós e entre nós), para resolver célebre problema filológico-teológico, é simplesmente brilhante. O mesmo deve ser dito acerca do fecho: os que confessam também conhecem o que seja solidão. Mas conhecem e confessam mais do que isso. Assim, a confissão expressa solidariedade com os homens, anexando um convite-apelo aos outros: confiem também! (A dimensão do humor não ficou ausente: uma das sentenças quase repete o lema impresso no papel-moeda norte-americano...) 

UM CREDO DA COMUNIDADE ESTUDANTIL EVANGÉLICA DE BONN

Nós cremos em Deus
que dá sentido à nossa vida,
origem e alvo de toda realidade,
através do qual estamos ligados a todas as coisas.
E em Jesus Cristo, nosso Senhor,
um homem nascido como nós,
no qual estava a vida propriamente dita,
a proximidade de Deus e seu poder
para nos chamar a uma vida nova,
presenteada imerecidamente,
em liberdade e gratidão.
Rejeitado pelos homens,
entregue ao poder estatal,
exposto ao mais profundo absurdo,
na cruz e na morte,
ele faz um apelo à nossa decisão, apesar de tudo,
e dá-nos coragem para crer, amar e esperar,
pois participa, agora, da realidade vivificante de Deus,
que se aproxima de nós, exige algo de nós e nos agracia.
Nós cremos em sua atuação presente,
que todas as igrejas estão unidas nele,
que através dele é possível a comunhão autêntica,
que ele nos liberta de toda alienação
e dá sentido à esperança mesmo diante da morte.
Nós cremos.
Senhor, ajuda-nos em nossa falta de fé. 

Eis um texto que quase poderia ser adotado por universitários do mundo inteiro: linguagem sofisticada, formulações dialéticas, alguns termos-chave que lembram outros tantos debates acadêmicos fundamentais. O esquema trinitário foi mantido de forma discreta (Espírito Santo — realidade vivificante de Deus — sua atuação presente) e ortodoxa. A combatida virgindade de Maria foi abolida em benefício de enfoque mais paulino (involuntário?). As referências a Deus, quase generalizadas e filosóficas, recebem clara especificação através do ''homem nascido como nós, no qual estava a vida''. A expressão nosso Senhor é só aparentemente tradicional: a rigor, foi retomado o sentido bíblico-polêmico original (veja-se a sentença entregue ao ''poder estatal''!). A tônica dos conceitos é de ordem existencial e é quase inevitável verificar a influência de Sartre, Camus, Bultmann. A situação ecumênica é abordada com honestidade, embora a rejeição do ''creio numa igreja'' seja questionável. O tema da justificação pela graça (ausente no Credo Apostólico!) foi oportunamente incluído. O fecho é comovente, no melhor sentido da palavra, ao retomar a confissão de fé de ''um homem'', a quem Jesus ajudou. É bom relembrar que, no caso, a confissão foi anterior (!) ao milagre (Marcos 9.14-29).

CREDO USADO EM CULTO DE JOVENS, EM GÜTERSLOH (Christoph Wahl) 

Creio em Deus,
o Pai de todos os homens
e Senhor do mundo,
seu Criador e mantenedor.
Creio que Deus me colocou neste mundo
e que sou responsável diante dele.
Creio em Jesus, o Cristo,
no qual Deus se encontra com o homem.
Creio que ele me reconcilia com Deus,
que ele vive e reina
e me chama a servir aos homens.
Creio que Deus está agindo no mundo através de seu Espírito Santo.
Creio que ele me chama por sua palavra à sua comunidade
e que tenho comunhão com ele pelo pão e pelo vinho.
Creio que Deus estabeleceu um alvo para este mundo
e permite que eu participe de seu futuro. Amém.

A formulação procura expressar a fé individual e consegue, ao mesmo tempo, evitar todo individualismo. Pois o eu está constantemente correlacionado com os outros: todos os homens, a realidade deste mundo, a comunidade. O que alguns preferem chamar de ortodoxia, está assegurado plenamente: todas as relações humanas tornam-se possíveis pela ação de Deus; a ação de Deus é fundamentalmente seu encontro reconciliador com o homem, em Cristo; esse encontro cria comunidade, indica tarefas e tem um objetivo. (Note-se que seu futuro é o de Deus, não o do mundo, de acordo com o original.) O credo mantém a referência trinitária e é quase a paráfrase do Apostólico, abstendo-se, porém, de mencionar tudo aquilo que costuma provocar polêmicas e enérgica rejeição da parte dos jovens: geração e nascimento sui generis de Jesus, descida aos infernos, ascensão. A supressão do termo ressurreição não constitui aspecto novo, já que nem o Novo Testamento o utiliza sempre. É possível que jovens de todas as idéias prefiram confessar que Cristo vive, que existe um futuro e que se pode contar com esse futuro como sendo nosso.

OUTRO CREDO PARA JOVENS 

Creio que Jesus foi o que deveríamos ser:
Servidor e irmão de todos os que precisavam dele.
Porque amou, teve de sofrer.
Porque não foi só prudente, teve de morrer.
Mas ele não morreu em vão e, a rigor, não foi derrotado.
Será dele a última palavra e todos, os mortos, os vivos e os vindouros,
serão avaliados por seu critério.
Creio que, com Jesus, entrou novo espírito no mundo,
que ensina uma linguagem comum a homens tornados inimigos,
fazendo com que se reconheçam como irmãos;
que nos encoraja a prosseguir a rebelião do amor contra o ódio;
que aguça nossa capacidade de julgar,
vencendo o desespero e tornando compensadora uma vida fracassada.
Creio que sou o que sou, através de Jesus.
É através dele que experimento o poder de Deus.
E, assim como eu, todos os homens devem tudo isso a ele,
mesmo que não saibam.
Como a mim, chamou todo o mundo para dentro da vida.
É dele o mundo, diante dele somos responsáveis por tudo o que fazemos.
Sim, estou de acordo com minha vida e digo sim à minha destinação:
dar adiante o que recebi de Deus.

Eis uma tentativa fulgurante de retomar o mais antigo, original e conciso credo (Jesus é Senhor) e traduzi-lo em termos contemporâneos e informais. O carpinteiro de Nazaré é a medida de todas as coisas, a começar por mim. E, quando me olho, ocorre um juízo, uma crise. A crise de uma descoberta incômoda e constrangedora: não somos irmãos e detestamos servir. Não amamos e preferimos ser prudentes. Mas ele foi o que deveríamos ser! 

A descoberta do eu está relacionada, de maneira muito adulta, com a descoberta de todos os outros, de toda a realidade. E o juízo, a crise recai sobre tudo isso que se conhece. Todas as frustrações e até mesmo a vida perdida recaem sob um juízo proclamado com gana, com o ímpeto de reiterado Pentecostes. Mas não é juízo excludente nem condenatório, pois cumpre prosseguir a rebelião do amor. O novo espírito trazido para dentro do mundo é conscientizador. Por isso, o sim à vida e à tarefa implícita no ato de viver. 

CREDO FORMULADO EM RETIRO PARA SOLDADOS 

Jesus Cristo — nosso Senhor!
Ele viveu na terra o amor de Deus,
fazendo-nos ver como um homem
pode se encontrar com outro homem.
Ele fez a experiência de como nos excluímos
mutuamente da comunidade por força de preconceitos.
Mas também demonstrou que é possível
reconduzir excluídos para dentro da comunhão.
Igualado aos excluídos, teve de sofrer
e morreu como criminoso na cruz.
Mas nós sabemos que ele não ficou na morte,
e, sim, vive ainda hoje.
Com todos os que confiam em Jesus,
espero que ele permaneça comigo também,
quando sinto medo e não consigo crer.
E quando eu morrer.

O responsável pela formulação desse modelo, o pastor luterano alemão Helmut Ruhwandl, foi acusado de heresia e difamação de Jesus Cristo, há dois anos. Mas a direção de sua Igreja rejeitou os argumentos dos opositores. 

O credo, como tal, desconhece referências trinitárias, enfatizando o fato salvífico da cruz (e da ressurreição). Mas essa ênfase não desconhece a relevância que cabe ao Cristo que age hoje. Daí a sequência de problemas atuais: humanidade, preconceitos, solidariedade, justiça. Além dos protestos, não faltou quem elogiasse o abandono de formulações metafísicas e incompreensíveis em prol de expressões extremamente simples (ou quase simplórias): que ele permaneça comigo também... quando eu morrer. Além de evitar o impessoal e distante, o autor também conseguiu traduzir o que seja solidariedade universal ou ecumenismo de modo agradável e inteligível: todos os que confiam em Jesus. A crítica mais objetiva, talvez, foi a formulada por Werner Schmidt: não estariam os participantes do retiro por demais preocupados com seus próprios problemas? A pergunta é séria. No entanto, que é que nos preocupa ao professar a fé?

CREDO DE DOROTHEE SOLLE 

Creio em Deus que não criou o mundo já pronto,
como coisa que deva ficar como está, para sempre;
que não governa segundo leis eternas de imutável validade,
nem segundo ordenações naturais de pobres e ricos,
especialistas e desinformados, dominadores e dominados.
Creio em Deus que deseja a resistência do que vive
e a transformação ele todas as condições
através de nosso trabalho, através de nossa política.
Creio em Jesus Cristo que tinha razão ao lutar
pela transformação de todas as condições,
sozinho como nós sem nada poder fazer,
e que com isso se arruinou.
Comparando com ele, reconheço
como nossa inteligência se atrofia,
nossa imaginação sufoca,
nosso esforço é vão,
porque não vivemos como ele viveu.
A cada dia temo que ele tenha morrido em vão
porque está soterrado em nossas Igrejas,
porque traímos sua revolução
em obediência e por medo às autoridades.
Creio em Jesus Cristo que ressurge em nossa vida
para que fiquemos livres de preconceitos e arrogância, de medo e ódio,
continuando sua revolução em direção de seu reino.
Creio no Espírito que entrou no mundo,
com Jesus, na comunhão de todos os povos
e em nossa responsabilidade pelo que resultar de nosso mundo:
um vale de lágrimas, fome e violência ou a cidade de Deus.
Creio na paz justa que é realizável,
na possibilidade de uma vida plena de sentido para todos os homens
e no futuro deste mundo de Deus. Amém.

É pouco conhecida no Brasil a combativa teóloga alemã que redigiu esse último credo de nossa seleção. No entanto, é possível que sua reflexão fornecesse elementos mais relevantes para a tarefa de cada um do que os oferecidos por certas correntes neofeministas. Seja como for, será impossível, nos próximos anos, ignorar a contribuição de D. Sölle sempre que a teologia tiver de levar a sério problemas imanentes, questões de solidariedade e universalidade. A mulher que certa vez definiu ateísmo como sinônimo de resignação (!) desafia-nos com seu modelo de profissão da fé.

O credo apresenta estrutura quase trinitária (seria a paz objeto de um quarto artigo?), embora não se constatem maiores pruridos de ortodoxia. Ao mesmo tempo que menciona a criação, a autora centraliza a atenção nas condições e situações reinantes nessa criação: subdesenvolvimento e os males que o configuram. Todo aquele que confessa sua fé é uma criatura engajada na luta pelo equacionamento e/ou solução de problemas contemporâneos — que são problemas da fé. É compreensível, portanto, que desapareça qualquer menção explícita a fatos salvíficos (em vez de foi crucificado, encontramos ele se arruinou). Da mesma forma foram rejeitadas as diversas interpretações tradicionais (caráter sacrificai, vicário e/ou gracioso da morte de Jesus). 

Por outro lado, aquilo que ninguém consegue sozinho torna-se viável com a união de todos (os povos): a comunidade universal, a paz justa (e não apenas maquilada), a vida dotada de sentido. Como é possível a realização dessa empreitada? Pelo Cristo que vive (ressurge) em nós, capacitando-nos a continuar sua revolução, que tem um objetivo bem claro: a cidade de Deus, imanente, para todos os homens, a terra em que é possível uma paz justa e uma vida que tenha sentido. Com muita razão, D. Sölle relembra que o reino de Cristo não se situa nos céus — e que seria irresponsável rejeitar este mundo de Deus em prol de uma noção vaga de transcendência.

UM CREDO SEMPRE NOVO?

Nenhum dos exemplos e modelos apresentados resolve a problemática inerente a qualquer confissão de fé. Mas todos eles evidenciam a necessidade da procura, a validade da tentativa e a urgência da experiência. A fé, além de ser questão pessoal, é também tarefa comunitária, envolve a história de um grupo e não pode prescindir de contemporaneidade. A fé nunca é a mesma e nunca é de ontem. Veja-se a insistência no hoje, no livro do Deuteronômio (5.3 ou 26.16-19) ou na Epístola aos Hebreus. 

Sob esse ponto de vista, os diversos modelos de credos atuais cumprem função pedagógica. Resta saber se a necessária universalidade já foi alcançada. Inquirir a respeito dessa ecumenicidade não é exagero, já que toda confissão de fé responde, também, aos desafios de um tempo, de uma época, de uma geração. E os problemas e desafios de nosso tempo têm dimensão planetária. 

A questão da universalidade talvez se torne mais clara na releitura dos textos selecionados em perspectiva latino-americana. Conseguiremos identificar-nos com tais formulações? Ou refletem tais credos a preocupação de elementos, honestos sim, mas ainda oriundos de estruturas sociais afluentes?
Por último, a pergunta que terá ocorrido a alguns: onde ficou o modelo mais nosso, a profissão de fé gerada em nosso contexto? 

Em matéria de textos já elaborados e em uso, dispomos de pouca informação. Para a última Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, no entanto, foi sugerido um texto do Credo Social da Igreja Metodista do Brasil. Ainda é impossível saber onde foi liturgicamente aproveitado, e desconhecem-se reações e comentários. A título de comparação e complementação vai reproduzido aqui: 

Cremos em Deus, Criador de todas as coisas
e Pai de toda a família humana,
fonte de todo o amor, justiça e paz.
Cremos em Jesus Cristo,
Deus que se fez homem como cada um de nós,
amigo e redentor dos pecadores,
Senhor e servo de todos os homens.
Cremos no Espírito Santo, Deus defensor,
que conduz os homens livremente à verdade.
Cremos que a comunidade cristã universal
é serva do Senhor;
que a unidade cristã é dádiva do sacrifício do Cordeiro de Deus
e que viver divididos é negar o Evangelho.
Cremos que o culto verdadeiro,
que Deus aceita dos homens,
é aquele que inclui a manifestação de uma vivência de amor,
na prática da justiça e no caminho da humildade
junto com o Senhor. Amém. 

Constata-se logo que o texto é universal em sua linguagem no sentido de que poderia ter sido formulado em qualquer parte do mundo onde haja cristãos preocupados com a dimensão ecumênica da fé e com questões de justiça, liberdade e paz. É evidente a ausência de vários tópicos fundamentais da fé cristã, assim como não transparece a preocupação pelos desafios próprios do tempo brasileiro. 

No entanto, é possível que justamente indique, com muita clareza, o âmbito e a dimensão de nosso testemunho. A ausência das palavras é indicadora, por vezes, da ocorrência de uma profissão de fé que fala mais alto. E que se chama martírio.

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[Publicado também em: Estudos Teológicos, ano 12, nova sequência, no. 2, 1972, p.70-79 e  em  Irreverência, compromisso e liberdade. O testemunho  ecumênico do pastor Breno Arno Schumann.  Escola Superior de Teologia e Koinonia, 2004, p.79-92.]


Autor(a): Breno Arno Schumann
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Cadernos de Divulgação Cultural - Juiz de Fora/MG
Natureza do Texto: Artigo
ID: 21949
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Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas ações a fazer e, sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar.
Martim Lutero
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