Justificação pela Fé e Espiritualidade

Reflexões em torno de Lutero

01/09/1984

Justificação pela Fé e Espiritualidade

Ervino Schmidt

INTRODUÇÃO

Parece que hoje, no mundo inteiro, se discute sobre espiritualidade. Na V Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, realizada nos dias 13 de novembro a 10 de dezembro de 1975, em Nairobi, o assunto espiritualidade foi um dos temas centrais. Já nos documentos preparatórios para essa Assembléia, espiritualidade mereceu destaque. Em relação com o tema ¨Diálogo com representantes de Religiões e Ideologias de nosso tempo¨ é dito o seguinte: ¨Um outro impulso, sem dúvida controvertido, mas desafiador, é a questão do lugar da espiritualidade, em especial da adoração, da oração, da meditação no diálogo¨. (1) Na própria Assembléia o Secretário Geral do CMI Philip Potter falou de uma ¨crise espiritual¨ do homem de nossos dias. ¨Os homens estão marcados pelo medo — medo de perder seus privilégios; medo de assumir responsabilidade pelo outro; medo de discórdia e conflito; medo de violência; medo de transformação; medo de formas de fé e de vivência comunitária, que são diferem das suas próprias.¨ (2) Espiritualidade designa aí a integral vivência da fé. Poderíamos também falar de espiritualidade combativa já que a perspectiva da solidariedade com os pobres e oprimidos estava sempre presente. Igrejas de tradição luterana fazem parte do CMI. De lá lhes vêm, portanto, impulsos para uma reflexão em torno de espiritualidade. Aliás, este termo é relativamente novo nas igrejas de tradição luterana. Não que o assunto como tal tenha estado ausente! É que não se usava o conceito espiritualidade. ¨Piedade¨, porém, desde a Reforma tem merecido atenção especial.

Também nas comunidades da IECLB, espiritualidade é um tema atual. Ele aparece em quase todas as variações possíveis quanto ao seu conteúdo.

Pretendemos, neste estudo, constatar algumas características do que vem a ser espiritualidade evangélica luterana. Num primeiro passo perguntamos pelo Deus gracioso. Justificação pela fé e por graça é uma questão de relevância na nossa sociedade? Caso afirmativo, o que se pode concluir para a espiritualidade? Em seguida, tentaremos apontar para a estreita ligação existente entre justificação e ação do Espírito Santo. Por fim, esboçaremos algumas características daí decorrentes para a espiritualidade como vivência dos agraciados.

1 — SITUAÇÃO SOCIAL E A PERGUNTA POR ESPIRITUALIDADE COMO PERGUNTA PELO DEUS DA GRAÇA.

1.1 Progresso e dominação

Estamos vivendo em um mundo que segue de maneira unidirecional aos parâmetros da eficiência e da expansão, da produção e do consumo. O que conta é o progresso em termos quantitativos. Do homem é exigido que ele simplesmente aceite tal concepção de progresso. Na maioria das vezes ele nem consegue sair deste esquema. Se a ele se submete e nele se integra poderá até ir bem materialmente. Poderá até progredir externamente, mas no fundo do seu ser ele corre sérios riscos de ser destruído. Numa situação mareada pela concorrência e por um incessante corre-corre o homem não pára para meditar, para sonhar ou simplesmente para não fazer nada. Quem o faz é considerado preguiçoso ou vagabundo. Poderíamos dizer: onde o progresso significa de maneira unidimensional eficiência e expansão, também o homem acaba sendo unidimensional. Outra coisa do que corrida desesperada não conhece. Realmente, não há mais tempo para brincar, sonhar, meditar!

Onde está o tão decantado mundo da técnica e do progresso? Cada vez mais os homens são vítimas, são esmagados. Parece até que as coisas que o homem produz se voltam contra ele. O que se chama de progresso não é, em todo caso, a criação de condições mais dignas para os seres humanos. Ao contrário, técnica, progresso, ciência se tornam instrumentos de dominação. É como se estivesse tudo descontrolado. E por trás desse descontrole há grupos que se beneficiam e não têm nenhum interesse em uma mudança no sentido de uma maior humanização.

Neste jogo perdem tanto os que fazem questão de manter este sistema, quanto os que são obrigados a se integrarem nele! Vem-me à mente, neste contexto, o que está escrito em Mt 16.26: ¨Pois o que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida¨?

1.2 Coisificação do homem

Qual o valor das pessoas? Não é assim que, em ampla escala, se tornam objeto? Atribui-se tão alto valor às coisas que estas acabam ocupando o lugar reservado às pessoas. Por todos os meios se tenta convencer os homens do valor dos objetos. Claro, a finalidade é a venda. O meio para adquirir qualquer coisa é o dinheiro. Por isso, as pessoas se tornam obcecadas pelo dinheiro. Tudo o que se pode comprar passa a ter um valor extraordinário. Alguém mal vestido não tem muito valor. Por isso, o imperativo é vestir-se bem. E vestir-se bem, em geral, significa vestir peças caríssimas. Toda a propaganda fomenta este espírito que por certo é um mau espírito e não pode servir de base para verdadeira espiritualidade. Iates, carros velozes, dinheiro, joias, mulheres elegantes são GS costumeiros ingredientes para uma boa propaganda. Dessa forma ocorre que as coisas determinam o valor das pessoas. É realmente difícil convencer alguém que ¨o dinheiro não traz felicidade¨. O dinheiro parece ser onipotente. Não é por acaso que Marx, interpretando uma passagem do Fausto de Goethe escreve: ¨O que existe para mim através da mediação do dinheiro, aquilo que eu posso pagar... tudo isso sou eu, o possuidor do dinheiro. O meu próprio poder é tão grande quanto o poder do dinheiro dele. As propriedades do dinheiro são as minhas próprias propriedades e faculdades. (...) O dinheiro é o bem supremo, e por isso seu possuidor é bom. Além do mais, o dinheiro poupa-me do trabalho de ser desonesto; por conseguinte, sou presumivelmente honesto. Sou estúpido, mas como o dinheiro é o verdadeiro cérebro de todas as coisas, como poderá seu possuidor ser estúpido? (...) Eu, que posso ter através do poder do dinheiro, tudo que o coração humano deseja, não possuo, então, todas as habilidades humanas? Não pode o meu dinheiro transformar, então, todas as minhas incapacidades em seus opostos¨? (3) Assim, as pessoas são coisificadas. O que faz uma pessoa ser aceitável e de valor é o dinheiro que possui e o que é capaz de comprar.

1 . 3 Competição desumana

Essa mentalidade do possuir, do ter, leva a supor que crescer signifique obter mais lucros. Para consegui-los é preciso vencer os adversários. O que importa é subir na vida. E o pior, tem que se subir sozinho, é claro! Um funcionário, por exemplo, se promove, se consegue sobrepujar os outros. As pessoas são obrigadas a não serem humanas. Não é necessária muita fantasia para imaginar um industrial tentando levar a indústria concorrente à falência. Neste sistema não há lugar para compreensão, muito menos para amor fraternal. O que se observa é o seguinte: Quanto mais desumano e frio alguém for, tanto mais eficaz será, e tanto maior será a garantia de lucros. É isso afinal o que se deseja. É uma luta selvagem! E há os que irremediavelmente caem na miséria. Há muita solidão em meio a essa concorrência. Há muita insegurança. O dia de amanhã é incerto. É um mundo ¨sem graça¨.

1.4 A procura de identidade

Em meio à corrida própria de uma sociedade em que o que conta é a produção e o consumo, o homem ocupa um lugar onde funciona como uma pequena engrenagem. Sabe que pode, a qualquer momento, ser substituído. Desempenha, por algum tempo, uma determinada função. Sente a fragilidade de sua situação e se pergunta pela sua real função como ser humano. Talvez não consiga formular a sua pergunta no sentido filosófico pela sua identidade. Pois isso exigiria tempo para parar e refletir. E este ele não tem! Não! É antes a pergunta de alguém acuado e angustiado. ¨Quem sou eu?¨ Ou, pior: ¨Ainda sou alguém?¨ O homem gostaria de ser alguém. Espera ser reconhecido em seu valor. Não agüenta ser simplesmente substituível. ¨Anseia pela graça de poder ser. Quer não somente mais vida, mas antes de tudo, sua própria vida¨ (4). É difícil agüentar a situação, de a cada passo, ter que depender da aceitação por parte dos mais influentes. A cada instante estamos expostos ao julgamento de alguém e esperamos com inquietação que sejamos aceitos. Está aí o diretor, por exemplo. Ele é de influência. Mas está aí também o colega de trabalho. Dependemos do seu conceito acerca de nós. Vivemos em uma sociedade que criou o padrão do homem que vale pelo seu sucesso. O que acontece com alguém que só tem fracassos a registrar, e que não foi de ¨benefício¨, ao menos não conforme os padrões vigentes? Sua vida por isso não tem sentido?

2 — JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ E POR GRAÇA

Vimos que há uma preocupação pelo valor último da história e da existência do homem. Quem, em última instância, atesta a razão de sermos? De primeira vista esta pergunta pela justificação parece não ser exatamente a pergunta de Lutero pelo Deus gracioso. Relembremos, neste particular, algumas frases do Reformador. Ele escreve: ¨Eu, porém, não conseguia amar o Deus justo que castiga o pecador. Odiava-o, isto sim, pois mesmo vivendo como monge irrepreensível, sentia-me como pecador diante de Deus; minha consciência estava intranqüila até ao extremo e não tinha certeza alguma de que Deus fosse aplacado por minhas satisfações. Estava indignado com Deus. E se não blasfemava em secreto, nem por isso deixava de murmurar violentamente contra ele dizendo: 'Não basta que os pecadores miseráveis perdidos para sempre por causa do pecado original sejam oprimidos por toda espécie de calamidades através da sua lei? Será que Deus tem que, além disso, aumentar nosso tormento através do Evangelho e ameaçar-nos com sua justiça e sua ira?' Assim estava eu furioso com minha consciência desnorteada¨. Depois o texto continua: ¨Aí Deus se comiserou de mim¨. (5)

Uma distância considerável está colocada entre estas formulações e nós. Para muitos as frases que acabamos de ouvir certamente têm o sabor de Idade Média. Com isto as preocupações que elas expressam, deixam de ser válidas? Será que a pergunta pelo Deus gracioso está, de fato, ultrapassada? Será que a pergunta pela graça divina em nossos dias não é de extrema atualidade? E isso não somente no âmbito individual, mas também no social e político? Falar de justificação pela fé e por graça, tenho certeza, é central ainda hoje.

Talvez se deva colocar a questão em uma perspectiva mais ampla. Talvez seja necessário, antes de mais nada, falar da graça como sendo uma realidade que desde o princípio do mundo está presente. Trata-se de uma realidade anterior a toda culpa humana e que está presente apesar da mesma. Devemos articular a criação toda e a própria vida como experiência da graça. É necessário ver que a graça não entrou no mundo para consertar um acidente ocorrido. Ela está presente de modo determinante desde o início. Sim, ela é a dimensão do definitivamente importante. Ela leva a uma determinada maneira de se encarar o mundo e a história. É a descoberta do sentido derradeiro e último.

A graça vem de Deus, mas se manifesta na realidade do mundo. E experimentá-la desperta confiança. Confiança não podemos criar. Ela, essencialmente, depende de algo fora de nós. Um exemplo da vida diária: Se confio em alguém, isso acontece porque essa pessoa desperta confiança em mim. Assim também acontece com a confiança no sentido último. Jesus confiou nele inteiramente e o chamou de Pai. Poderíamos dizer também que Jesus fez a experiência da graça de tal maneira que foi levado a chamar Deus de Pai. É tarefa nossa apontar para a graça de Deus a partir do Evangelho de Jesus Cristo.

A graça está no centro de todo o ser. Que eu posso dizer: ¨existo¨ já é graça. O homem já desde sempre é um agraciado. Nesta visão ampla de graça está incluída a dimensão social. Quem destaca isto muito é H. Zahrnt em sua mais recente obra ¨Aufklaerung durch Religion¨. Ele desenvolve este aspecto, apontando, inicialmente, para uma compreensão um tanto estreita e individualista de graça. Traz um exemplo concreto. Refere-se à Calvino. Este, perguntado como pode o apóstolo Paulo esperar dos cristãos que não se submetam ao jugo da escravidão e, ao mesmo tempo, exigir dos escravos que não se importem com a sua triste situação, deu a seguinte resposta característica: ¨Isso só pode ter sua razão no fato de que liberdade cristã e escravidão social podem tranqüilamente conviver¨ (6). Chamo atenção que de Lutero se poderia citar algo semelhante. Zahrnt segue este raciocínio dizendo: ¨E assim os cidadãos cristãos — calvinistas, luteranos, católicos — podiam, de boa consciência, fazer um passeio até o cais, no domingo entre o culto e o almoço, a fim de verem as galeras deixando o porto. Podiam até tranqüilizar-se mutuamente com a afirmação que também o escravo de galera acorrentado ao seu assento, pode ser interiormente livre¨ (7).

Esta atitude acrítica quanto à ordem social, mais tarde seria caracterizada com a célebre expressão de Marx do ¨ópio do povo¨. Estas observações todas, porém, atingem uma compreensão deturpada de graça. Aqui nos ocorrem as palavras programáticas de D. Bonhoeffer com as quais abre seu livro ¨Discipulado¨: ¨A graça barata é inimiga mortal da nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.¨ (8) Mais adiante ele especifica o que ele entende por graça barata: ¨Ela é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão de pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo encarnado.¨ (9) O caso é que o homem sempre investe muito esforço em descobrir onde a graça pode ser conseguida mais barata, mas neste esforço ele acaba sempre procurando a si próprio. Com esta tentativa de auto-afirmação o homem não consegue experimentar o que efetivamente é a graça preciosa. A dimensão da gratuidade exatamente é desprezada e se perde. Todos os nossos esforços, mesmo na vida mais piedosa, no fundo impedem a experiência da graça que na morte e ressurreição de Jesus Cristo encontrou sua expressão definitiva.

Até espiritualidade poderá ser obra piedosa se ela não for espiritualidade doada e, com isso, fruto da fé. Como ¨proprium¨ nossa espiritualidade é carne!

Mas, voltando à dimensão social — a experiência da graça leva ao discipulado. Livra-nos de nós mesmos, leva-nos à obediência e nos remete ao irmão! É nessa caminhada que nossos olhos são abertos para a nossa verdadeira situação, tanto individual, quanto coletiva. É neste contexto que Lutero nos diz o seu afamado ¨pecca fortiter, sed fortius ficle et gaude in Christo¨ (Peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e agarra-te em Cristo!). Esta frase de Lutero pode ser um incentivo evangélico para nós no sentido de vencermos a nossa omissão no mundo por medo de pecarmos. Aí nos é dito: Não queiras ser outra coisa do que em verdade és! Isto é um convite para a luta contra o pecado a partir do Evangelho que nos busca justamente na nossa condição de pecadores. Aí não há lugar para individualismo religioso nem para indiferença. Aqui há seguimento e luta contra tudo que oprime a gratuidade da vida. Aí está a verdadeira esperança para o mundo, uma esperança que não é abstrata, mas que é concretíssima!

O que quero dizer é que a mensagem evangélica da graça de Deus é inspiração poderosa para trabalharmos os desafios que na sociedade de hoje se nos colocam. Aqui eu poderia ver uma ligação estreita entre graça e ortopraxia. Hoje mais do que nunca o homem em meio às suas angústias, que ele vive numa sociedade competitiva como a esboçamos acima, pergunta pelo sentido da história e da sua própria vida.

O que ou quem justifica, em última instância, a nossa existência? A resposta: somos justificados gratuitamente pelo próprio Deus é extremamente atual. De modo algum justificação por fé e por graça é uma mercadoria sem procura!

3 — JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ E O AGIR DO ESPIRITO SANTO 

Tocamos, sem dúvida, o tema central da teologia luterana. Mas como se coloca a questão do Espírito Santo de onde a expressão espiritualidade é derivada? Pode-se ouvir a opinião de que a teologia luterana não teria ¨compreensão suficiente para o testemunho bíblico do Espírito Santo. Sua relação para com a pneumatologia se caracteriza por um certo embaraço. Não sabe o que fazer com ela porque não cabe no seu sistema de doutrina¨. (10)

Se olharmos para a Confissão de Augsburgo, notaremos que nem sequer existe um artigo explícito sobre o Espírito Santo. Mas facilmente se pode perceber que atrás dos diversos assuntos tratados está sempre presente o 3.° artigo do Credo Apostólico. Além do mais, exatamente após a questão da justificação pela fé e por graça se encontra na CA o artigo V ¨Do ministério eclesiástico¨. Aí lemos: ¨Para que alcancemos essa fé, foi instituído o ministério que ensina o evangelho e administra os sacramentos. Pois, mediante a palavra e pelos sacramentos, como por instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a Deus, naqueles que ouvem o evangelho¨. É interessante ler também a condenação que se segue! ¨Condenam os anabatistas e outros que pensam vir o Espírito Santo aos homens sem a palavra externa, através de suas próprias preparações e obras.¨ (11) Sem dúvida, a partir daí podemos dizer que a clássica espiritualidade luterana é antiespiritualista e antientusiasta. Decisivo é o ¨sem próprias preparações e obras¨ e que o Espírito Santo não é dado ¨sem a palavra externa¨. Aqui é preciso diferenciar um pouco mais. Para Lutero, apenas Jesus Cristo é a Palavra de Deus para nós. Esta é testemunhada na Escritura. Logo, o Espírito Santo considera este testemunho acerca de Cristo. Mas o Cristo vivo não pode ser identificado com a palavra externa da Escritura nem com os sacramentos. Falaremos disso mais adiante. Aqui basta acentuarmos que o Espírito é quem vivifica os meios de graça. Eles não garantem salvação por si mesmos, nem criam fé por si mesmos. Assim, na teologia luterana há uma íntima relação entre justificação pela fé e por graça e a doutrina do Espírito Santo.!

Mas como falar sobre o Espírito Santo? Hendrikus Berkhof, afamado teólogo holandês tem razão quando afirma: ¨Este tema, quase mais do que qualquer outro, produz um sentimento de profunda perplexidade na mente do teólogo que se atreve a refletir sobre ele. Compreendemos que estamos tratando com cousas que superam em muito nossa compreensão¨. (12) Devemos ter isto em mente, mas não precisamos abandonar o tema.

É interessante observar que o Concílio de Constantinopla (381) designa o Espírito Santo como ¨aquele que vivifica¨. Somente depois fala da sua unidade com o Pai e com o Filho.

Também no Antigo Testamento, Espírito, em primeiro lugar, é entendido como fonte e origem da vida, de toda a vida. E a representação do Espírito está estreitamente ligada a vento, ar e sopro. Podemos imaginar ar em movimento. Subentende-se aí a dependência do homem deste poder da vida. No Sl 104,29 lemos: ¨Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados e, assim renovas a face da terra¨.

A partir da ação do Espírito como origem da vida temos que entender também as manifestações como se apresentam desde a inspiração de um artista até ao profeta. Todas estas manifestações têm a ver com o Espírito criador de Deus.

No contexto da estreita ligação existente entre Espírito e vida se pode perceber o que significa para a perspectiva escatológica de Israel que, nos últimos tempos, o Espírito de Deus estaria atuando de modo especial. Conforme Is 11.2, o Messias não somente será movido pelo Espírito, mas este repousará sobre ele. ¨Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes um renovo. Repousará sobre ele o Espírito do Senhor...¨.

No cristianismo primitivo percebeu-se a estreita ligação existente entre a nova realidade manifestada na cruz e ressurreição de Jesus Cristo e o Espírito. O Espírito que é a origem da vida é também a origem da nova vida. Os cristãos mesmos participam desta nova realidade da ressurreição pela fé.

Neste sentido, para os cristãos só é possível falar adequadamente do Espírito em conexão com a nova vida manifestada em Cristo. Vale também o inverso: Onde há relação com o crucificado e ressuscitado, ali está o Espírito. Principalmente em Paulo se pode constatar uma ¨decidida orientação cristológica da doutrina do Espírito Santo¨ (13). Quanto ao alcance desta constatação para a espiritualidade podemos dizer com H. Meyer: ¨Significa que a dádiva do Espírito Santo não se constitui unicamente na transmissão de uma força impessoal que se manifesta exclusiva e principalmente em milagres e sinais sobrenaturais, mas sim que a dádiva do Espírito Santo é o próprio Cristo¨. (14) Sabemos que os reformadores colocaram todo peso nesta orientação cristológica.

¨O Espírito Santo é a certeza da vinculação com Jesus e sua vida que supera a morte, uma certeza que não tem caráter teórico, mas fiducial¨ (15).

4 -- AMEAÇAS A ESPIRITUALIDADE

4.1 O perigo do entusiasmo

A Reforma sempre de novo se voltou contra o assim chamado entusiasmo. Por isso talvez até hoje a Igreja luterana tem sérias dificuldades com movimentos carismáticos. Sob entusiasmo entendemos aqui todo movimento que insiste em influências diretas, inspirações e êxtases, sem qualquer mediação externa, como sendo a verdadeira forma da presença do Espírito Santo. Aliás, a luta contra o entusiasmo caracterizou a Reforma no mínimo tanto quanto a polêmica com a igreja católico-romana. Sobretudo os incidentes com Karlstadt e Thomas Muenzer fizeram história! Muenzer é conhecido como revolucionário. Ao meu ver o que ele inicialmente pretendia era muito válido. Ele quis evitar um individualismo de salvação. Para ele a dimensão social, desde logo, deveria estar incluída quando se tratava de salvação. Mas o que no nosso contexto importa é algo diferente. Lutero sempre foi um teólogo da Palavra. Para ele não influências diretas, mas o testemunho bíblico foi de suma importância. Isso ficou documentado também nas suas palavras pronunciadas na dieta de Worms (1521). A pergunta foi se Lutero estaria disposto a retratar-se.

Ele deu uma resposta clara: ¨A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura Sagrada ou com razões decisivas não posso retratar-me¨. E mais adiante: ¨Fui vencido pelos argumentos bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus. Não posso e não quero revogar porque é perigoso e não é certo agir contra sua própria consciência. Que Deus me ajude. Amém¨ (15a) É isso aí: ¨Fui vencido pelos argumentos bíblicos¨!

Muenzer, ao contrário, se sabia inspirado diretamente. Valorizava sonhos e visões. Como pregador inflamado, arrebatava multidões. Certamente foi significativa a sua análise da questão social. Mas onde sua inspiração não mais se deixava medir na palavra, ali chega a se entender como um novo Gideão. O final desse episódio é conhecido.

Lutero chama os entusiastas de ¨franco-atiradores do Espírito¨. A seu amigo Melanchthon ele escreve: ¨Se não nos falam mais do que expressões agradáveis, tranqüilas, religiosas, piedosas, como dizem, não os creias, ainda que afirmem ter sido arrebatados ao terceiro céu. O sinal do Filho do homem (a cruz) lhes falta (...) Não, a majestade divina, como dizem, não fala aos homens imediatamente de sorte que o homem a possa ver.., não escuteis nem Jesus glorificado, se não tendes visto antes Jesus crucificado¨. (16)

Na espiritualidade luterana, portanto, é necessário valorizar os meios externos, ou seja, a palavra em sua pregação pura e os sacramentos em sua administração correta a fim de se permanecer sob o poder renovador do Espírito Santo.

4.2 O perigo do institucionalismo

A pergunta naturalmente é se, por outro lado, não há o perigo inverso. Dissemos que a presença renovadora do Espírito Santo se efetua por meios externos. Mas existe o perigo de se querer subordiná-lo exatamente a esses meios. A tentação de se querer domesticar o Espírito e de ignorar que ele age onde e quando agrada a Deus é grande. A tentativa de o homem amarrar o Espírito acontece de múltiplas maneiras. Menciono como exemplo a própria compreensão de Escritura. Se antes conservar a primazia da Palavra de Deus significava voltar-se contra um espiritualismo que despreza a encarnação, então agora significa soltar-se contra um fundamentalismo que amarra Deus ao pé da letra.

Poder-se-ia, também, pensar numa ação automática dos sacramentos. Quanto a isso Brandt escreve: ¨O Cristo vivo como a Palavra de Deus jamais pode ser identificado com a palavra externa, com a prédica ou com os sacramentos e muito menos ainda pode ser subordinado aos mesmos. Pois é o Espírito Santo em seu agir criativo que torna presente e vivifica na palavra externa a Palavra de Deus propriamente dita — Cristo¨. (17) Poderíamos seguir enumerando outras situações. Poderia, por exemplo, ser feita a tentativa de se supervalorizar a instituição e declará-la como detentora do Espírito, ou de se colocar uma confissão eclesiástica como verdade revelada, e assim por diante. Deveríamos ter em mente que o Espírito Santo, em seu agir renovador, permanece sempre dádiva. Nunca ele se torna disponível, assim que o pudéssemos ter como posse. Sempre de novo é preciso orar: ¨Vem Espírito Criador!¨

5 — VIVÊNCIA DOS AGRACIADOS NA LIBERDADE DO ESPIRITO

No que colocamos até aqui manifestou-se uma determinada compreensão do que é o sentido último da vida. A maneira como o experimentamos vai determinar a vivência da fé, a espiritualidade. ¨O significado da vida confere-nos um caráter específico que nos molda a maneira de estar no mundo¨. (18) Entendemos a vida como doação, como graça. Falamos do Espírito Santo como daquele que vivifica, como ¨origem da vida¨ e que também aqui vale ¨sola gratia¨. A partir do sola gratia, espiritualidade evangélica não é legalista ou moralista. Não se pode tratar de construir (organizar) espiritualidade ou de atender um sem número de pré-requisitos legalisticamente fixados. Espiritualidade não é um ideal moral a ser alcançado. Sabemos que leis exigem uniformidade. Todos seriam obrigados a apresentar a mesma forma de espiritualidade. Aí se extrangularia a liberdade própria do Espírito. E onde isso acontece, ansiedade passa a marcar a vivência. Enfim, espiritualidade não pode ser entendida e vivenciada como obra nossa, como produto do nosso esforço! Concretamente isto significa que nossas orações, nossos cultos, nossos encontros, nossa contemplação são sinais de termos sido agraciados. Dentro disso qualquer tom de arrogância destoa.

Quando dissemos que a mensagem da graça de Deus é inspiração poderosa para trabalharmos os desafios que na sociedade, na qual estamos inseridos, se colocam, ficou evidente que espiritualidade evangélica não nega o mundo. Lembro que D. Bonhoeffer aqui nos poderia ser um exemplo. Em um escrito seu, do ano de 1932, ele diz: ¨Só os que amam a terra e Deus ao mesmo tempo, podem crer no reino de Deus¨. Podemos amar a terra e ouvir a voz de nosso próximo exatamente por termos sido presenteado. ¨Por termos sido presenteados, nossas energias não estão mais presas à necessidade de auto-afirmação... Por isso espiritualidade cristã tem sempre uma dimensão social e política¨. (19)

A espiritualidade cristã não é fuga do mundo, porque está centrada na cruz e na ressurreição de Cristo.

Notas:

(1) Von Uppsala nach Nairobi. In: Epd dokumentation. v. 15. Bielefeld e Frankfurt, 1975, p. 118.

(2) KRUGER, Harnfried, MUELLER ROEMHELD, Walter. Bericht von Nairobi 1975. Frankfurt, 1976.

(3) MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 7. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 146.

(4) ZAHRNT, Heinz. Aufklärung durch Religion. München, Piper, 1980, p. 78.

(5) WA 54. 185s.

(6) CALVINO, João. Institutio IV 20.1.

(7) ZAHRNT, Heinz. op. cit., p. 109.

(8) HONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo, Sinodal, 1980, p. 9.

(9) BONHOEFFER, Dietrich. op. cit., p. 10.

(10) MEYER, Harding. O Espírito Santo e a Renovação da Igreja. In: Estudos Teológicos, São Leopoldo, 5(4): 169, 1965.

(11) COMISSAO INTERLUTERANA DE LITERATURA. Livro de Concórdia. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução e notas de Arnaldo Schüler. São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1980, p. 65.

(12) BERKHOF, Hendrikus. La doctrina del Espiritu Santo. Buenos Aires, La Aurora, 1969.

(13) KAESEMANN, Ernst. Geist und Geistesgaben. im NT. In: GALLING, Kurt, ed. Die Religion in Geschichte um] Gegenwart. 8. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1958. v. 2, col. 1274.

(14) MEYER, Harding. op. cit., p. 171.

(15) PANNENBERG, Wolfhart. Das Glaubensbekenntnis ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart. Hamburg, Siebenstern, 1972, p. 148.

(15a) Conforme a tradução de GREINER, Albert. Lutero. São Leopoldo, Sinodal, 1969, p. 107. (16) GREINER, Albert. op. cit., p. 126.

(17) BRANDT, Hermann. O risco do Espírito. São Leopoldo, Sinodal, 1977, p. 23.

(18) MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida. São Paulo, ASTE, 1978, p. 19.

(19) BRANDT, Hermann. Espiritualidade. São Leopoldo, Sinodal, 1978, p. 83.

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Autor(a): Ervino Schmidt
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Reflexões em torno de Lutero II / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1984 / Volume: 2
Natureza do Texto: Artigo
ID: 24916
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