Luteranos em Contexto



ID: 2650

Somente a Fé

Confessionalidade Luterana

 Então, basta somente a fé e nada mais? Geralmente, quando feita, esta pergunta tem uma segunda intenção, talvez motivada por comodismo, letargia e ‘graça barata’, por isso, inicialmente, de forma cuidadosa, a resposta à pergunta deve ser: ´depende´. Pode ser ´sim´, mas também pode ser ´não´. Somente a fé não é um princípio que exclui os demais solas: Cristo, graça e Escritura. Em verdade, Cristo, graça, fé, Escritura perfazem um todo e, por isso, a rigor, se poderia falar em um único ´somente´. Seria um ´somente Cristo-graça-fé-Escritura´. Da mesma forma, Lutero jamais afirmou que a fé exclui as obras de amor. Pelo contrário, a fé e o amor também perfazem uma grandeza única. A fé faz obras. Quando Lutero afirma o ´somente pela fé´, ele não quer excluir as exigências das obras, mas excluir autojustificação e automeritocracia diante de Deus. A fé, então, não combate as obras, mas as afirma. O que o ´somente pela fé´ combate são o egoísmo e individualismo que decorrem da autojustificação e dos méritos próprios.

Retornemos ao conceito fé. O que é fé? Com frequência, ouvem-se afirmações do tipo se você tiver fé, vai dar certo, basta ter fé, aí tudo vai terminar bem, não perca a fé, você precisa ter fé. Estas e outras expressões semelhantes têm em comum que a fé depende da própria pessoa. A fé, neste caso, é sempre obra da própria pessoa. A intensidade da fé ou a falta dela tem como fonte a própria pessoa. Logo, se algo ´deu errado´, a culpa é da pessoa pela sua falta de fé´. Inversamente, se algo de ´bom´ lhe aconteceu, o mérito é dela, pois teria tido fé.

A compreensão de fé, desta maneira, traz, pelo menos, dois problemas. O primeiro indica que Deus somente estaria presente ali onde existe sucesso. Além disso, a obra redentora de Deus em Jesus Cristo na cruz é ignorada. O mérito da salvação não é creditado a Cristo, mas ao próprio ser humano e é medido por sucesso, êxito e bem-estar. Aliás, a mensagem da cruz nem serve para este tipo de compreensão de fé, pois cruz é sinônimo de fracasso, morte e derrota, por isso Deus precisa ser ´manipulado´ e apresentado somente como um Deus forte e vitorioso. O segundo problema é que, em decorrência dessa compreensão de fé, Deus é apresentado como distante e inalcançável. Deus fica ausente especialmente nas realidades de frustrações, fracassos e doenças, já que fé e Deus seriam sinônimos de sucesso. Logo, o desespero, a angústia e até a revolta contra Deus podem ser as consequências desse tipo de compreensão de fé.

Contra esta compreensão, Lutero relaciona fé com a palavra latina cedere. Fé é ceder. É ceder e não resistir diante de Deus. Fé é não se encurvar sobre si mesmo e suas próprias qualidades e potencialidades, mas se sujeitar à palavra de Deus. Fé é ceder diante de Deus que, através da sua palavra e do Espírito Santo, nos julga, consola, faz tropeçar, levanta e carrega, nos entristece, nos alegra. Assim, fé é confiança total em todos os momentos da vida, por isso, para Lutero, também existe um único pecado do qual todos os demais decorrem: a falta de fé-confiança em Deus. Quando a pessoa não confia em Deus, ela se curva sobre si própria e, assim, se torna injusta, egoísta, individualista, gananciosa, arrogante, prepotente, violenta e assassina.

Somente a fé, como ceder, permite ´enxergar´ Deus. Isso é deveras importante para a nossa sociedade, que vive da lei de causa e efeito, segundo a qual bem-estar e riqueza são anunciados como evidência de fé e doença e fracassos, como sinônimo de falta de fé. Lutero foi muito cuidadoso em relação a isso. Partindo da teologia paulina, ele percebia que a fé não necessariamente ´arranca espinhos da carne´. Dizendo-o de outra maneira, a fé não é garantia da ausência de tristezas, fracassos, doenças, injustiças e opressão. A fé, contudo, é força para ´enxergar´ a mão de Deus nestas situações da vida, nas quais o ´somente a fé´ enxerga o ´somente o Salvador´, o Deus de Jesus Cristo.

Lutero levou muito a sério os dramas das pessoas e buscou oferecer respostas profundamente consoladoras para pessoas que se sentiam angustiadas. Dizia ´Agradeça a Deus por seus tormentos! Somente as pessoas eleitas são colocadas em provações a esse respeito´, por isso ele aconselhava a oração: ´Contemple o Cristo dado por nós. Então, se Deus desejar, você se sentirá melhor´.

Para Lutero, pela fé ocorre o encontro entre Deus e a pessoa cristã. Pela fé, todas as forças, o consolo e a esperança, nas diferentes situações de vida, são conosco e em nós. Pela fé, a pessoa é ´transportada´ para junto de Deus, de forma que se torna uma com Deus e não pode ser mais separada dele, a não ser pela falta de fé.

Somente pela fé, Deus apresenta as suas promessas às pessoas cristãs. Pela fé, a pessoa recebe e já pode viver, em esperança, um pouco aquilo que ainda não tem plenamente, por isso o autor da Carta aos Hebreus (11.1) define assim a fé Ora, a fé é a certeza das cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem. A fé coloca a pessoa em posição de espera diante da ação de Deus, por isso a fé é espera e confiança naquilo que Deus prometeu para o futuro. Entretanto, esta não é uma espera passiva, pois a esperança do que ainda não se tem é vivida já parcialmente para dentro do presente. Poderíamos ilustrar isso da seguinte forma: o dia de amanhã é sempre futuro. Não temos o amanhã, mas, na perspectiva de ontem, o ´amanhã´ é hoje. Assim é com a fé e a esperança: enquanto esperamos o amanhã, já vivemos hoje a esperança e testemunhamos para dentro do hoje o amanhã. Então, o amanhã já muda qualitativamente o dia de hoje. Assim é com a fé cristã. Enquanto o ser humano espera em fé a justiça plena, o amor e a fraternidade, a vida abundante e a ressurreição, ele já vive e testemunha antecipadamente para dentro do ´hoje´ o que terá plenamente ´amanhã´. A fé dirige-se àquilo que permanece não revelado à pessoa cristã. Somente se pode falar em ´fé em Deus´ porque não temos todas as respostas para a vida e a morte. Essas respostas serão reveladas por Deus somente na eternidade, no ´amanhã´.

Na revelação de Deus em Cristo, a pessoa cristã tem as respostas necessárias para a sua vida neste mundo. Ao mesmo tempo, pela promessa de salvação revelada em Jesus Cristo, a pessoa cristã, pela fé, pode ter a certeza da promessa do que lhe permanece não revelado nesta vida. Assim, por meio do Deus revelado em Jesus Cristo, a fé dirige-se a Deus, por isso Lutero pode afirmar que ´é coisa do diabo procurar Deus fora de Jesus´. A cruz é, então, o caminho, a ponte da fé em Deus, na certeza da sua revelação plena em majestade e glória no Reino eterno, por isso a fé confessa Deixa Deus ser Deus. A fé confia em Deus absolutamente, portanto não permite a especulação sobre o amanhã, mas vive no ´hoje´.

A fé é dádiva de Deus provocada pelo Espírito Santo. Logo, ela não é resultado de dignidade ou esforços humanos. A fé tem a sua origem no próprio Deus por meio da sua palavra, portanto também não pode ser imposta a ninguém e não se pode medir o ´tamanho´ da fé das pessoas, muito menos julgar a fé dos outros. Lutero chega ao ponto de afirmar que não deveríamos nos denominar irmãos e irmãs a partir do princípio da fé, mas somente a partir do princípio do amor, pois o amor pode errar. Vivemos o grande perigo em medir a fé com critérios humanos. Não raramente, a prosperidade material, o sucesso, os carismas e o poder são considerados sinais de pessoas com ´muita fé´. Assim, líderes, pregadores, empreendedores de sucesso, enfim, pessoas que se destacam por carismas ou até ´dons extraordinários´ são apresentadas como modelos, pessoas que ´estão de bem com Deus´, que agradam a Deus, pessoas de ´muita fé´. Na busca por alcançar uma posição semelhante, pessoas empreendem esforços e, não raramente, frustram-se, porque percebem que não irão alcançar esse mesmo ´sucesso´. Isso ocorre devido à tentação de ´medir´ e comparar a fé!

A fé liberta a pessoa dela mesma, de seu egoísmo, vanglória, falta de amor e ódio, por isso Lutero afirmou que ´pela fé, o cristão é livre, senhor de todas as coisas, e a ninguém subordinado´. No entanto, ao ser liberta por Cristo, a pessoa é liberta para o amor. A fé leva ao amor cristão. O amor é fruto da fé, de forma que ´pelo amor, o cristão é o servo submisso de todos´. A fé leva ao serviço, assim como Cristo serviu. Logo, a pessoa cristã torna-se um pequeno cristo para o seu próximo. Pela fé, a pessoa cristã se relaciona com Deus. Pelo amor, a exemplo de Cristo, a pessoa desce na direção do próximo. Pela fé, Deus quer ser Senhor em nossas vidas. Pelo amor, Ele quer ser Senhor através dos cristãos no mundo. Assim, fé e amor são uma coisa só e, somente quando se tornam uma coisa, se pode afirmar: somente a fé basta!

P. Dr. Wilhelm Wachholz
(Doutor em Teologia pelo PPG da Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, foi Pastor da Paróquia de Santa Cruz do Sul/RS e da Comunidade da Ascensão, em Novo Hamburgo/RS. Atualmente, é Professor de disciplinas de História da Igreja na Faculdades EST, onde pesquisa e leciona disciplinas em nível de Graduação e Pós-Graduação, além de Coordenador do PPG da Faculdades EST e Secretário Geral da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Teologia e Ciências da Religião)
Fonte: Jornal Evangélico Luterano, 2012 maio
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