Semana dos Povos Indígenas

Arteno Spellmeier

23/11/1998

Introdução

Em 1994 escrevi, em co-autoria com o colega Friedel Fischer, um pequeno livro em alemão, com o objetivo de resgatar um pouco da história dos agricultores da região de Ariquemes (RO). Iniciamos o livro com a história sobre o povo indígena Uru-Eu-Wau-Wau, os primeiros moradores daquela região. Reconto a de forma condensada a seguir.

É uma história baseada em fatos verídicos e em dados reais. Os nomes, no entanto, foram alterados, a sequência dos fatos, mudada e a abordagem e reflexão, criadas.

É um relato sem grandes pretensões. Com ele simplesmente quero contar a história de sofrimento e resistência das famílias Uru-Eu-Wau-Wau, frente à ocupação de seu território e espaço de vida pelas mais diversas frentes de invasão, e da família Oliveira. Conscientemente procuro uma abordagem pastoral, a partir da dor e do sofrimento das pessoas. É através deles que as famílias desta história, tão diferentes em suas culturas e jeitos de viver, estão unidas. A dor e o f sofrimento, no entanto, só servem de elo entre pessoas e culturas se através deles as diferenças culturais não forem negadas, as diferenças sociais forem descobertas e as injustiças, expostas e superadas. É insuportável a afirmação ingênua e, ao mesmo tempo, terrivelmente cínica de uma senhora da Alemanha que, ao se referir à dor das mães negras da África do Sul ao terem seus filhos assassinados pelo regime racista de outrora, disse: Penso que as mães de lá não sentem a morte de seus filhos como nós a dos nossos. Afirmações deste tipo negam o outro através da negação de sua dor.

É uma história para ser lida e refletida em grupos: de jovens, de senhoras, de famílias... E uma história que quer confrontar-nos com o fato de que os invasores não são os povos indígenas, mas a sociedade e economia não-indígenas. Ela quer ser um pequeno exemplo de que o tal descobrimento ainda continua acontecendo e que, na verdade, é um encobrimento dos indígenas como indivíduos, como culturas e etnias diferenciadas.

Em 2000 muitos comemorarão os 500 anos do descobrimento, motivo para os vencedores deste país falarem das glórias do passado e do presente; outros falarão dos 500 anos de escravidão, extermínio e discriminação dos povos indígenas, das populações negras e dos pobres em geral. O segundo enfoque é o que chega mais próximo da verdade histórica.

Não foram os povos indígenas que nos impuseram o martírio, mas nos o impusemos a eles. As marcas dos cravos nas mãos de Jesus não estão em nossas mãos como seguidores e seguidoras de Cristo, mas nas mãos desses povos. Se para as primeiras comunidades cristãs as marcas dos cravos, as marcas do martírio, eram fortes sinais de sua fidelidade ao seu Senhor, que as tinha ainda em suas mãos mesmo como ressuscitado (Jo 20.19-29), o que significa isso para o nosso discipulado?

Não estará na hora de as igrejas cristãs mostrarem o seu arrependimento por terem calado, quando deveriam ter protestado contra a escravização e o massacre dos povos indígenas, e por terem falado, quando deveriam ter calado? Que deus estranho é esse que as igrejas de Cristo, muitas vezes, representam: um deus que se poupa a si mesmo, a seus seguidores e suas seguidoras de todo o sofrimento, mas o impõe, sem limites, aos povos indígenas?

Não estará na hora de nos aproximarmos humildemente dos povos indígenas e de tentarmos viver com eles a gratuidade da reconciliação de Deus, que implica trabalhar o passado de destruição, pedir perdão, criar perspectivas conjuntas para o futuro, devolver-lhes as condições de vida que lhes foram roubadas (2 Co 5.16-21)?

Para quem quiser relacionar esta história de vida com uma reflexão bíblica ou com a liturgia do culto sugiro o aproveitamento do auxílio e dos subsídios litúrgicos que elaborei para o Proclamar Libertação vol. 23, p. 159-166.

Para quem quiser subsídios adicionais sobre a temática indígena recomendo a leitura dos seguintes trabalhos:

a) Edson E. Streck em Proclamar Libertação vol. 10, p. 48-64;
b) Lori Altmann em Proclamar Libertação vol. 15, p. 61-70;
c) Graciela Chamorro em Proclamar Libertação vol. 17, p. 275-280.

Vida e morte dos Uru-Eu-Wau-Wau

Ainda é cedo, o sol está querendo apontar no horizonte, quando vários tiros ecoam, assustando os pássaros. Mortalmente feridos e estirados na picada da selva nos confins da Rondônia estão dois homens e duas mulheres do povo indígena Uru-Eu-Wau-Wau. O assassino foge sem ser reconhecido. Os sobreviventes do grupo recolhem os mortos e cuidam dos feridos. Pelo tipo de arma usada eles sabem que os tiros foram disparados por um não-índio, que o responsável por esse assassinato estúpido deve ser um dos muitos invasores de sua área de caça e coleta. Os mais jovens exigem vingança. Foram muitos, incontáveis os parentes mortos nos últimos tempos. Não é mais possível continuar assim. É necessário dar um basta a tudo isso. É necessário resistir para não perder a auto-estima. É preciso mostrar que há limites a serem respeitados, limites em todos os sentidos.

É o dia 26 de outubro de 1979. Numa caminhada sem descanso os mortos e feridos são levados para a aldeia. Um grupo de guerreiros se põe em marcha. No outro dia à tarde avistam um tapiri, uma choupana de folhas de palmeira. Numa clareira no meio da selva. No igarapé estão três rapazes. Eles não se dão conta da aproximação dos guerreiros Uru-Eu-Wau-Wau. São pegos de surpresa. Não mais conseguem chegar à espingarda de cano duplo. Ao entardecer, os dois irmãos mais velhos são encontrados pelos pais, moribundos, atravessados por flechas. De Flávio, o mais novo dos irmãos, não há nenhum sinal.

Os colonos e seringueiros da redondeza apavoram-se e muitas famílias abandonam seus casebres, suas roças e colocações. Mudam-se para a casa de parentes e amigos em áreas já mais abertas e acessíveis. Quando, alguns dias mais tarde, o segundo dos irmãos morre por causa dos ferimentos sofridos, os pais entram em estado de choque. Eles sepultam também o segundo filho no cemitério de Ariquemes, de acordo com os seus costumes. De Flávio não há sinal de vida. De um momento para o outro a vida da família Oliveira se desfez. Como suportar a perda dos filhos? Como viver com esse vazio que ficou? Como entender essa estupidez? Como aguentar essa mistura de dor, impotência e ódio?

Também os Uru-Eu-Wau-Wau lamentam a perda de seus familiares e sepultam os seus mortos. De acordo com os seus costumes, eles os sepultam no local de fogo da maloca, em que nas noites frias os mortos se aqueciam e onde passaram parte de suas vidas. O que fazer com esse sentimento terrível, essa mistura de dor, impotência e ódio?

O grupo de famílias irá mudar-se para outro local. A maloca será abandonada e, assim como o casal Oliveira periodicamente irá visitar e chorar no túmulo de seus filhos em Ariquemes, os Uru-Eu-Wau-Wau voltarão à maloca antiga para chorar os seus mortos. Depois de um espaço de tempo entre 5 e 10 anos eles irão desenterrar os ossos e os levarão para a nova moradia, onde serão enterrados debaixo do local de fogo para que os seus espíritos não passem frio. Antes, no entanto, é necessário superar a dor que não quer passar, preencher o vazio que ficou e achar um sentido para a morte sem sentido e sem motivo dos familiares.

Seres humanos de culturas e sociedades diferentes com diferentes valores, costumes e línguas unidos pela mesma dor, por perguntas iguais.

Como os demais povos indígenas, também os Uru-Eu-Wau-Wau reúnem-se à noite ao redor do fogo para se aquecer, para contar e ouvir histórias. As histórias transformam-se, com o passar do tempo, em mitos que são a memória refletida e condensada do povo, do grupo familiar. Contam histórias antigas e novas. Também dos massacres e dos seus mortos eles falam. Memorizam e constroem os mitos do seu povo através da repetição do que é conhecido e tia inclusão refletida do que é novo. Eles sabem que aquele que perde a memória está perdido.

Os mais velhos contam aos mais novos que há muito tempo os antepassados vieram de uma região para os lados do sol nascente. Tiveram que dar o lugar a um inimigo mais forte. Estabeleceram-se nessa região rica em rios, montanhas, matas e caça em que hoje estão vivendo. Eles falam da vida e da morte, dos parentes e inimigos, das festas e pescarias, dos atos heróicos e do medo, das coisas concretas com os seus espíritos e das coisas dos espíritos com a sua realidade.

Os mais velhos contam aos mais novos que houve épocas de paz, sem inimigos fortes que os oprimissem. Tudo isso, no entanto, mudou profundamente mais ou menos na época em que o avô era criança. Aí vieram pessoas diferentes: da seringueira elas tiravam o leite e tinham um jeito diferente de viver, mas, principalmente, possuíam armas poderosas. Muitos guerreiros, mas também crianças e mulheres foram mortas nos conflitos com os intrusos.

Falam dos povos vizinhos, com os quais conviveram pacificamente ou tiveram periodicamente guerras, e que foram exterminados até a última criança pelos intrusos. Falam do povo Arikem (Ariquemes) que vivia às margens do rio Jamari e do qual restam poucos sobreviventes, que não são mais temidos e orgulhosos guerreiros, mas vivem, como os brancos mais pobres, na periferia de Ariquemes, Ouro Preto e Porto Velho.

Os mais velhos contam aos mais novos que depois veio uma época de maior tranquilidade, que, no entanto, não durou muito, pois novos invasores chegaram: loucos, armados com suas picaretas, atrás do ouro e de outros minerais; loucos com suas armas atrás da pele da onça pintada; loucos com uma coisa barulhenta atrás do cedro mogno; loucos com seus bichos de chifres atrás da terra sem mato. Muitos outros vieram e foram entrando selva adentro como se sempre tivessem morado aí, como se eles, os primeiros moradores, não existissem.

Contam das ciladas, dos estupros das mulheres e dos massacres que os novos invasores praticaram contra seus familiares. À noite, junto à fogueira encenam a expulsão dos invasores e, com o arco pronto para atirar, correm de uma extremidade do terreiro até a outra, saltando e soltando gritos agudos para afugentar o inimigo. Expulsam os maus espíritos.

Contam das ciladas que eles prepararam e das batalhas que venceram. Falam das táticas usadas de atacar os invasores em pequenos grupos em diversas frentes, simultaneamente. Com orgulho falam das batalhas, em que até as mulheres participaram, preparando o arco para os melhores flechadores. Mas o que fazer agora contra essa verdadeira avalanche de gente atrás das coisas mais loucas? Como defender-se contra eles?

Agora precisam abandonar a aldeia e a maloca. Eles se põem a caminho à procura de um bom lugar com bastante água para construir a nova maloca. O menino branco é levado junto.

O dia 27 de outubro de 1979, o dia do ataque dos indígenas, marcou definitivamente a vida da família Oliveira. Passam-se os meses. Desesperada-mente eles procuram pelo seu filho. Todas as pistas são seguidas, sem resultado, porém. Flávio continua desaparecido. Paulatinamente o luto se transforma em ódio e a dor, em desejo de vingança. O seu Oliveira pertence a uma tradicional família de seringueiros, que no decorrer da Segunda Guerra Mundial foi trazida do Nordeste como soldado da borracha para a região do rio Jamari, em Rondônia. O patrão, o dono do seringal, fornecia os gêneros alimentícios, os instrumentos de trabalho e todo o necessário para sobreviver na selva diretamente a preços escorchantes. Apesar de a família toda trabalhar muito, sempre ficara em dívida com o patrão. Numa relação de escravidão moderna, de total dependência, a vida sempre fora dura, solitária e monótona. A vida das famílias de seringueiros tinha muito em comum com a vida dos Uru-Eu-Wau-Wau. Assim mesmo, um relacionamento amistoso entre os dois grupos, por via de regra, fora impossível desde o princípio e por princípio: os seringueiros não podiam dispor livremente da sua vida, eram dependentes do patrão e forçados a defender os interesses deste.

A luta pelo mesmo espaço existencial entre seringueiros e grupos indígenas é antiga. Há contas abertas de parte a parte. É, no entanto, uma luta desigual e genocida para os Uru-Eu-Wau-Wau:

Até recentemente, seringueiros invadiam suas aldeias e os massacres ocorriam na proporção de um branco morto para cada grupo de 60 ou 100 índios. De 1945 a 1984, a região dos rios Jamari, Candeias, Preto e Branco do Jamari e Jaru foi palco de conflitos sangrentos promovidos pelos invasores, muitos munidos com títulos de posse expedidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária — INCRA em terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. (Revista Nossa. v. l, n° 6, p. 11.)

O casal Oliveira experimenta de tudo para descobrir alguma pista de seu filho. Os seringueiros da região participam da procura. Especialmente o compra¬dor de borracha Sebastião engaja-se na procura, pois tem um conhecimento privilegiado do modo de viver dos Uru-Eu-Wau-Wau. Inicialmente ele fala só dos massacres promovidos por outros: Num só loca! eu contei 50 indígenas mortos. Finalmente confessa: Há muito tempo passado um parceiro e eu estáva¬mos caçando lá para os lados do rio Jamari, quando deparamos com um grupo de indígenas. Por via das dúvidas, descarregamos nossas armas em cima deles. Seis deles morreram na hora. Uma mulher e uma menina de 6 anos pegamos e trouxemos amarrado junto. A mulher morreu algum tempo depois de malária. A menina é a minha mulher Maria.

Para os seringueiros a selva não tem segredos ou quase não tem; mas também eles não conseguem localizar Flávio, que continua desaparecido.

As famílias Uru-Eu-Wau-Wau acham um lugar com água abundante para construir sua nova maloca. Levarão meses para construí-la. Ela terá mais ou menos 20 m de comprimento, 7 de largura e 7 de altura e será totalmente coberta e fechada com folhas de babaçu. Nela as famílias encontrarão proteção contra a chuva, contra o calor e contra os mosquitos. Ela será aconchegante. Nela as pessoas irão viver, cozinhar, dormir, criar os filhos...

Apesar de todas as famílias de um grupo viverem numa só maloca, da não tem paredes divisórias e, assim mesmo, a privacidade de cada família c a personalidade de cada membro são profundamente respeitadas. O respeito ao outro é uma das regras fundamentais na convivência dos membros desse povo altivo e guerreiro. Não há horários fixos para as refeições, para o banho no rio, para dormir, trabalhar... Não há uma separação clara entre o trabalho e o lazer. O ritmo de vida se orienta pelas necessidades grupais e individuais e pelo ritmo da própria natureza. Isto dá a eles uma liberdade tão grande como aquela selva e, simultaneamente, o aconchego de uma maloca.

Não vivemos nós, ao contrário, numa sociedade que, continuamente, está se individualizando? Numa sociedade em que a pessoa individual sobressai-se cada vez mais como um ser com consciência histórica e política, que faz questão de tomar decisões autônomas e que se propõe construir o seu próprio destino individual? Não ocorre que essa autonomia, muitas vezes, se transforma em caricatura? Quando, por exemplo, apesar da pretensa autonomia, ficamos cada vez mais dependentes da conjuntura, de interesses econômicos e políticos de grupos e organizações que estão a milhares de quilômetros de nós e que não mais podemos influenciar? Quando o nosso ritmo de trabalho é determinado por máquinas; quando as nossas relações com as pessoas amadas esfacelam-se sob a constante pressão de precisar trabalhar mais e mais para sobreviver ou para poder comprar as coisas que julgamos imprescindíveis? A vida em nossa sociedade fomenta, cada vez mais, o individualismo, por um lado, e a alienação de nós mesmos e de nossa família, por outro lado.

Cada qual está cada vez mais centrado/a em si e corre o risco de transformar-se num ser solitário e isolado, que, não raras vezes, tem dificuldades de construir relações profundas e duradouras. Há pessoas que, de tão centradas que estão em si, são incapazes de se amar a si mesmas como seres únicos, de aceitar o jeito de ser diferente das outras pessoas e de conviver com elas. Elas não mais se lembram que Deus criou o universo e tudo o que dele faz parte como criação heterogênea, diversificada, rica e colorida. Ignoram que ele criou todos os seres humanos à sua imagem, como seres diferenciados e únicos, mas de um todo, de uma comunhão maior. Colocar-se fora dessa comunhão é esquecer-se do fim para o qual Deus criou os seres humanos. Colocar-se acima da criação é querer ser igual a Deus, é idolatria.

Cada mulher, cada criança e cada homem Uru-Eu-Wau-Wau sabe-se parte de uma comunhão maior, da comunhão de seu clã, de seu povo, da natureza. Essa consciência de pertença ao grupo não diminui sua liberdade nem elimina a individualidade de cada membro do grupo, pois a relação dentro do grupo não é determinada pela concorrência, mas pela cooperação. Saber-se parte da natureza não diminui o seu espaço existencial, mas diz respeito à maneira como se relacionam com ela. Liberdade, pois, é mais do que não ter amarração nenhuma. Individualidade é mais do que ser, pretensamente, senhor do próprio nariz.

Liberdade, individualidade e inserção dentro de um grupo e da natureza complementam-se e são necessárias para a nossa sobrevivência física, espiritual, psíquica, social e cultural. Privacidade tem mais a ver com respeito pelo ser diferente da outra pessoa do que com a construção de paredes divisórias.
Quem olhou a própria sociedade a partir da entrada de uma maloca indígena enxerga-a com outros olhos, mais crítica e diferenciadamente. Ela não é mais tão definitiva, pronta e imutável. Impõe-se o reconhecimento de que, apesar de não ser possível fugir dela nem mudá-la a bel-prazer, ela é construída e, por isso, mutável. Fica mais fácil enxergar as coisas bonitas nela, assim como o que ela tem de feio, excludente e destruidor.

Não é possível transpor simplesmente a estrutura social dos Uru-Eu-Wau-Wau para a nossa realidade nem imitá-la. Fica-se, porém, com a pulga atrás da orelha. Tem-se a sensação de que se perdeu algo que outrora muito se amou. Tem-se o vago sentimento da perda de algo que não é mais possível identificar, mas que deixou muita saudade. Será o aconchego? Será a liberdade? Será a saudade do aconchego do colo da mãe e da ânsia por autonomia e liberdade que nos levaram a dar os primeiros passos trôpegos, quando crianças? Intui-se que esse aconchego total junto à mãe não é mais possível reviver, porque nos prenderia e inibiria. Entregar-se a ele pode ser fatal. Por toda a vida, no entanto, procuramos criar e recriar relações e modelos de proximidade e aconchego, em que seja possível viver a liberdade. Sente-se que a liberdade sem amarração, sem grupo de referência não faz sentido, porque isola e deixa a gente à mercê de si mesmo, das próprias dores, medos e instintos.

Quando, alguns dias depois do ataque, o segundo filho dos Oliveira morre em decorrência dos ferimentos sofridos, um grito de revolta ecoa pela região de Ariquemes. Garimpeiros, colonos, seringueiros, madeireiros e a população urbana vêem confirmados os seus piores temores e preconceitos: os índios são assassinos traiçoeiros, que devem ser liquidados. Eles são um empecilho para o desenvolvimento e o progresso da região.

A Fundação Nacional do índio (FUNAI) inicia os preparativos para fazer os primeiros contatos com os Uru-Eu-Wau-Wau, na tentativa de localizar o menino desaparecido. Sertanistas e conhecedores da selva do povo indígena Suruí voltam a Porto Velho, em fins de fevereiro de 1980, após muitas semanas de intensa e frustrada procura. Novas tentativas de contato são feitas, sem resultados positivos. Em meio ao território dos Uru-Eu-Wau-Wau, na localidade denominada Alto Lídia, a aproximadamente 100 km de Ariquemes em linha reta, instala-se um acampamento permanente com diversos acampamentos secundários, distribuídos pela região, em que são depositados presentes, como facões, machados e espelhos. Meses mais tarde os presentes continuam lá e não há nenhum sinal da presença dos Uru-Eu-Wau-Wau. O ano de 1980 transcorre sem que se consiga localizar Flávio e fazer qualquer contato com os Uru-Eu-Wau-Wau. A FUNAI sabe que o contato urge, pois o número de invasores e a pressão destes sobre o território indígena crescem dia a dia. E a falta de contato por parte do órgão indigenista não significa necessariamente que a frente de invasores não a tenha também. Apesar disso, só resta esperar.

Após 13 meses, a espera é premiada: no dia 10 de março de 1981 aproxima-se do lado do sol nascente um pequeno grupo de guerreiros do acampamento Comandante Ari Dal Toé, em Alto Lídia. Alguns estão desarmados, outros carregam nas mãos arcos e flechas. Alguns falam alto e gesticulam muito, outros mantêm-se silenciosos. O líder do grupo aproxima-se e levanta o facão que pegou num acampamento secundário e mostra os cinco dedos da outra mão. Quando o sertanista experiente em fazer primeiros contatos dá alguns passos para a frente ele recua, mas, em seguida, aproxima-se mais para receber os facões que pediu. Dias mais tarde o mesmo grupo volta, mas desta vez acompanhado por mulheres e crianças. O contato está definitivamente feito. É um contato de poucas palavras, de muitos gestos e risos. Falam-se línguas diferentes. Também os índios Suruí que acompanham a frente de contato não conseguem entender a língua falada pelos Uru-Eu-Wau-Wau. Mas de Flávio não há nem sinal.

A tragédia da família Oliveira parece não ter fim. Seis meses depois do desaparecimento de Flávio e da morte dos dois filhos mais velhos morre o Sr. Oliveira em consequência de uma malária mal curada, de acordo com os médicos, de amargura e desgosto, de acordo com os familiares. A família havia vendido o lote e demais bens para financiar a procura pelo filho desaparecido. De acordo com as informações de alguns Uru-Eu-Wau-Wau sobreviventes, no entanto, Flávio teria morrido logo nos primeiros dias num ataque feito por um grupo de seringueiros, madeireiros e colonos. Periodicamente corre a notícia de que foi visto entre os Uru-Eu-Wau-Wau um jovem branco. A cada novo boato renasce a esperança de rever o filho, o irmão. A procura da família Oliveira, na verdade, ainda não terminou.

No início do contato com os Uru-Eu-Wau-Wau um dos pesquisadores registra em seu relatório: Bati os olhos pela janela e vi o campo verde se avermelhando e escurecendo de figuras humanas despidas de todo preconceito e falsidade. Depois dos guerreiros, vinham as mulheres — lideradas por uma mulher velha seguida pelas crianças, as mais tímidas. Todos gozavam de boa saúde, sem marcas de ferida e a dentição dos jovens era clara...

Apesar de todos os cuidados tomados e apesar do acompanhamento especializado dado pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás, esse contato é o início do fim para a maioria das crianças, mulheres e homens Uru-Eu-Wau-Wau. Os cinco diferentes grupos contatados pela frente entre 1981 e 1983 compunham-se de aproximadamente 250 pessoas. Em 1992 restam somente 60. Não há entre eles nenhuma criança abaixo dos 10 anos e nenhum adulto acima dos 60 anos. As doenças levadas para dentro de seu mundo (gripe, malária, tuberculose...) custam a esse povo um alto preço: a 75% da população, a vida; aos sobreviventes, os pais, os avós, os filhos...

Como continuar a viver se a maior parte daqueles com os quais se partilhava a vida, a cultura, a casa, as tarefas, o lazer estão mortos? Como preservar a cultura, o jeito de viver e a estrutura social e familiar com tão pouca gente? Como praticar os ritos, as danças, os cantos...?

A tragédia do povo Uru-Eu-Wau-Wau não tem fim. As doenças trazidas pelos brancos nunca mais os deixaram. O número de invasores não tem diminuído. A sua área foi demarcada, mas está invadida por fazendeiros, agricultores, garimpeiros e madeireiros que a estão dilapidando. A natureza não mais se está podendo recuperar e, com isso, começa a faltar caça. O atendimento e acompanhamento pelo FUNAI são praticamente inexistentes.

O contato com a sociedade envolvente trouxe muitas e profundas mudanças para os Uru-Eu-Wau-Wau. Homens e mulheres já não andam mais nus. Fazem uso de panelas e pratos de alumínio, de armas, machados e facões. Muitos não entendem português e, assim mesmo, em um dos grupos ouve-se música pelo radinho de pilha da manhã à noite. Alguns começam a perder a sua identidade, a maioria resiste.

Apesar da tragédia sem fim, os Uru-Eu-Wau-Wau teimam em continuar a existir e a preservar o seu jeito de viver e a sua cultura. Evitam, tanto quanto possível, o contato com a sociedade envolvente. Continuam a preparar as suas roças, plantando milho, mandioca, batata doce, cará e algodão. Da mandioca preparam as bebidas tradicionais para os rituais. Pescam e caçam nas regiões ainda não destruídas pelos intrusos. As mulheres continuam a fazer as redes, os colares e outros objetos de uso e enfeite.

Pintam, como antigamente, o corpo com urucum e jenipapo, não de qualquer jeito, mas de acordo com um ritual fixo. O homem mais velho pinta-se a si mesmo ou é pintado pelas mulheres. A seguir são pintados o cacique, os guerreiros, as mulheres. Pinta-se o corpo para festejar a colheita do milho, o início da época de chuva, os ritos de passagem... Cada cor e cada símbolo têm um significado próprio. Dessa forma, diferenciam-se conscientemente de outros grupos e povos. Não querem ser confundidos com outras etnias. Ao mesmo tempo, identificam-se uns com os outros no grupo por terem os mesmos símbolos e significados.

Diferenciação e identificação perpassam a vida dos membros desse povo, e também a nossa. Diferenciam-se para ter identidade própria e identifi¬cam-se com os membros do grupo para não perdê-la. Enquanto não a negarem e enquanto a construírem a partir de seus valores e de sua cultura, sobreviverão física e culturalmente. Enquanto contarem ao redor do fogo, à noite, histórias antigas e novas e integrarem os acontecimentos em seus mitos, eles sobreviverão.

Quem perde a memória está perdido. Quem perde a identidade, também.

Oração

A seguidoras e seguidores teus fizeste a promessa, Senhor: Se vocês obedecerem às minhas palavras, serão de fato meus seguidores e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará (Jo 8.31 s.)

Tu és a verdade. Tu nos queres libertar das meias verdades e das mentiras completas, do aprisionamento ideológico, dos ídolos e deuses ocultos no fundo do nosso coração, da indiferença e das ideias pensadas pela metade.

Eram tão bons os tempos, meu Deus e Senhor, em que tudo parecia estar em ordem, em que eu estava em paz com o mundo e me sentia em paz comigo e contigo.

Eram tão amenos os tempos, meu Deus, em que eu compreendia a pobreza como sendo fatalidade e miséria como sendo provação e castigo teus.

Eram tão cheios de paz os tempos, meu Deus e Senhor, em que eu aceitava, ingenuamente, como sendo de tua vontade a vida destruída dos favelados, a humilhação das pessoas negras, a exclusão dos povos indígenas, a vida esculhambada das meninas e dos meninos de rua.

Foram-se os tempos de paz e de respostas prontas, Senhor, e me pergunto: como pude ser tão cego? Por que me satisfiz, por tantos anos, com meias verdades e mentiras deslavadas? O que me levou a pressupor que tu, em tua vontade maternal e paternal, estivesses de acordo com a pobreza, a injustiça, a humilhação e a escravização de tuas criaturas?

Como pude confundir a tua palavra libertadora com ideologias estranhas e o teu agir materno e paterno com sistemas e atitudes que criam dependência e matam?

Acabaram-se os tempos amenos, Senhor! Já não tenho paz com o mundo. Ele também não mais está em ordem, mas muito complicado e carente de libertação e amor.

A tua vontade não mais corresponde simplesmente aos meus desejos e os teus pensamentos às minhas ideias. Tenho dificuldades em reconhecer a tua vontade. Já não posso dispor de ti. Muitas vezes não te reconheço quando estás diante de mim e me olhas através dos olhos dos famintos, dos meninos e das meninas de rua, das pessoas humilhadas e solitárias, dos jovens drogados e confusos, dos povos indígenas massacrados e escravizados.

Acabaram-se os bons tempos. Graças te dou por isso. Graças te dou por me teres libertado para a tua verdade! Amém!

Perguntas para refletir:

O que as famílias da história têm em comum e em que elas se diferenciam?

Que passos deveriam ser dados para que nós entendamos melhor os povos indígenas e eles, a nós?

Como poderia acontecer o diálogo sobre as coisas da vida, da cultura e da fé com os diferentes povos?

Se queremos iniciar um processo de reconciliação com os povos indígenas para valer, o que, concretamente, devemos considerar? Qual deveria ser a nossa atitude básica? Em que textos bíblicos podemos procurar orientação, para que a reconciliação por nós almejada não se transforme em nova imposição aos povos indígenas?

Bibliografia

Revista Nossa, v. l, n. 6.
FISCHER, Friedel, SPELLMEIER, Arteno. Für Verzweiflung keine Zeit. Erlangen :
Verlag der Ev.-Luth. Mission Erlangen, Ev.-Luth. Missionswerk in Niedersachsen, 1996.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia
 


Autor(a): Arteno Ilson Spellmeier
Âmbito: IECLB / Organismo: Conselho de Missão entre Povos Indígenas - COMIN
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1998 / Volume: 24
Natureza do Texto: Artigo
ID: 12902
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