Jornal Evangélico Luterano

Ano 2012 | número 749

Sexta-feira, 26 de Abril de 2024

Porto Alegre / RS - 20:49

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

Anseio por justiça
   Somente a graça corresponde à afirmação central da pregação presente na Escritura Sagrada. A sua síntese mais didática está contida nas epístolas do apóstolo Paulo. Pregar somente a graça, porém, não foi acolhido com naturalidade muitas vezes. O Novo Testamento traz o eco de vozes que tinham dificuldades com o anúncio paulino, por exemplo, em 2Pe 3.15s. Também as pessoas, a partir da era moderna, passaram a ter grandes dificuldades com esta pregação. Pode-se afirmar que, em todas as épocas, o Evangelho da justificação da pessoa pecadora por graça e fé causou escândalo. O próprio Paulo escreve que a palavra da cruz é loucura para os gregos e escândalo para os judeus (1Co 1.23).
   A justiça está entre as virtudes mais consideradas. Mesmo o senso comum concorda que uma pessoa justa e uma sociedade justa estão entre os maiores bens. Também a tradição bíblica louva a justiça. O Antigo Testamento proclama o amor à justiça. Por meio da lei e da justiça, as relações humanas seriam organizadas de tal modo, que todas as pessoas envolvidas nessas relações poderiam ter o seu direito garantido, sem precisar fazê-lo à custa dos direitos dos outros. A justiça é compreendida como aquilo que dirige o conjunto das relações entre as pessoas, garantindo a preservação da vida humana. Onde reina a justiça, ali nasce a paz.

Conhecimento que liberta
   Com base no Salmo 51, Lutero afirmou o seguinte O conhecimento de Deus e do ser humano é a verdadeira e divina sabedoria teológica, mas é o conhecimento de Deus e do ser humano à medida que se relaciona ao Deus, que justifica, e ao ser humano, que é pecador. Portanto, o objeto da Teologia, na verdade, é o ser humano culpado e condenável e o Deus que justifica e é redentor. Isso quer dizer que, para ele, o interesse principal da pregação e da Teologia é o Deus que age, trabalha, faz a sua obra, que se dirige às pessoas e se preocupa com elas em sua condição lastimável. Isso tem a ver com a palavra de Deus. Deus age falando a sua palavra, uma palavra que cria do nada e faz nascer vida onde não há vida.
   A isso, Lutero relaciona o Cântico de Maria ´Deus fez grandes coisas em mim, ele que é poderoso´. Para o Reformador, isso quer dizer que ninguém faz coisa alguma, somente Deus faz tudo. Ele age em todas as coisas. Todas as obras das criaturas são obras de Deus. Lutero explica também o termo todo-poderoso, presente no Credo Apostólico. Deus é poderoso porque, em tudo, por meio de tudo e acima de tudo, tudo é feito exclusivamente por seu poder. Esta é a razão para que Deus seja adorado.
   Aqui se manifesta a, assim chamada, ´descoberta´ da Reforma. Lutero angustiou-se ao extremo até descobrir o sentido da expressão ´justiça de Deus´ na Escritura Sagrada. Lutero havia aprendido que a justiça de Deus é aquela que Deus exige que seja cumprida pelo ser humano. Com isso, apesar de todos os esforços para cumprir essa justiça, Lutero acabou em desespero. Foi levado a odiar a Deus, pois exigia dele uma coisa que não podia cumprir. Em meio ao desespero, tentou compreender o que o apóstolo Paulo chama de ´justiça de Deus´. Tinha à sua frente o versículo Eu não tenho vergonha do Evangelho de Cristo, pois é um poder de Deus para a salvação de todos os que creem. Nisto é revelada a justiça que tem valor perante Deus, à qual vem de fé em fé (Rm 1.16s).
   Conduzido por essas palavras, chegou à compreensão de que Paulo entende por justiça de Deus aquela justiça que Deus dá de graça. A justiça que o próprio Deus cria quando tem misericórdia das pessoas e as torna justas pela fé. Ao mesmo tempo, Lutero entendeu outras expressões da Escritura: poder de Deus é o poder com o qual Deus torna as pessoas poderosas; sabedoria de Deus é aquela pela qual Ele as faz sábias. Em todos esses casos, Deus é quem dá essas qualidades às pessoas. O que podem fazer as pessoas? Deixar que essa ação divina ocorra em suas vidas: somente a graça!

Deus faz todas as coisas
   O que chamamos justificação por graça e fé tem na sua base o seguinte conhecimento: Deus faz todas as coisas e o faz de forma ampla. Começa criando de forma continuada. Prossegue agindo na obra salvífica de Jesus Cristo e continua atuante por meio da obra do Espírito Santo.
   Pode parecer muito simples e sem novidade alguma dizer que uma Teologia tem a Deus e sua ação no centro. Isso, no entanto, não era tão natural assim naquele tempo. Podemos perguntar, também hoje, até que ponto a Igreja e a Teologia têm claro que, em primeira instância, Deus é quem está em ação? Em sua época, Lutero perguntava ´Como posso ter um Deus da graça e do amor?´ Na espiritualidade e nas práticas de fé daquela época, queria-se obter e chegar a Deus por meio das mais distintas obras. Essa espiritualidade estava orientada no ser humano e não em Deus. Na descoberta da Reforma, é fundamental a compreensão de que Deus faz tudo, por isso a explicação do Primeiro Mandamento, no Catecismo Menor, Devemos temer, amar e confiar em Deus acima de todas as coisas.
   Que salvação é esta que o Deus que justifica dá gratuitamente às pessoas? Uma vez, Lutero definiu o ser humano como simples matéria de Deus para a vida em sua ´forma futura´, se referindo à pessoa na glória eterna. No entanto, isso não é apenas consequência do juízo final, pois a salvação está presente já, agora, em todos os momentos, através do Espírito Santo, o Santificador, que torna as pessoas santas. A salvação de Deus começa já, aqui e agora. O Espírito Santo, que faz nascer a fé, a leva a produzir frutos, consola a pessoa em meio ao sofrimento e ao risco da morte iminente.
A santificação tem um grande significado para cada grupo de pessoas, para cada comunidade humana. Isso porque o Espírito Santo mata no crente o egoísmo, a inveja, o desejo de vingança e a ânsia pelo poder. Lutero conclui que justamente a pessoa crente pode ser alguém correta no mundo, ou seja, a pessoa, conduzida pelo Espírito Santo, pode agir na esfera pública resistindo ao seu interesse próprio, sem querer vantagem para si mesma. A salvação da pessoa, que Deus produz pelo Espírito Santo, está direcionada para a sua plena realização na eternidade, mas, ao mesmo tempo, já é salvação nesta vida, para cristãos e não cristãos, através de Cristo.
   Somente a fé é uma afirmação que precisa ser permanentemente sustentada, porque tudo o que Deus outorgou à humanidade, através de Jesus Cristo, é dádiva incondicional. A justificação decorre exclusivamente da bondade e misericórdia de Deus, sem nenhum mérito ou dignidade por parte da pessoa. Por outro lado, não se pode compreender somente a graça no sentido que a pessoa agraciada permaneça intocada em sua existência. Por certo, a graça corresponde à misericórdia dirigida por Deus à pessoa em relação a qual Ele é gracioso. A misericórdia constitui a própria essência de Deus. A sua graça o impele por completo, de maneira que, não só quem dela é alvo, mas também o próprio Deus é por ela determinado. Deus é gracioso de coração. Ele é gracioso de coração porque é inteiramente movido pelo amor.

Amor incondicional
   O amor, porém, não pode ser merecido. O amor se dá incondicionalmente, do contrário não é amor. Quando Deus tem misericórdia da pessoa pecadora, o seu amor não se dirige a alguém amável ou digno de amor, mas a alguém que o rechaça e de modo algum se mostra amável. Conforme Lutero, o amor de Deus não vai ao encontro do que é digno de ser amado, mas, antes de tudo, cria o que é digno de amor. Na pessoa pecadora, não existe algo de bom que possa contribuir para a sua justificação. Mesmo se quisesse, não poderia merecer o amor de Deus. Ela somente o vivencia por graça. Portanto, já que a graça exclui toda colaboração humana, ela não pode ser compreendida como um poder especial divinamente atribuído, que deixa a pessoa em condições de colaborar para fazer-se agradável a Deus e tornar-se merecedora de algo. A graça de Deus não se enquadra nos esquemas do mérito e da colaboração.
   O que se exclui na expressão somente pela graça? Todo esforço, colaboração e mérito, toda participação da pessoa em sua justificação. Isso faz bem à pessoa. Promove a sua humanidade. Ao invés de sujeitar-se a esforços, exigência de produtividade, cobrança por resultados, méritos, a pessoa se descobre presenteada. Ser presenteado traz alegria. Da mesma forma, presentear traz alegria. Não são exigidos resultados ou produtos, mas a alegria de ambos os lados se torna possível quando a graça se manifesta: alegria da parte do Deus que justifica e da parte da pessoa justificada. O Deus, que justifica, se alegra com a pessoa à qual concede a sua graça e esta se alegra com o Deus justificador. A alegria exclui toda e qualquer contabilidade e compensação. A alegria impede que, de algum modo, a graça seja contabilizada ou compensada. Isso é decisivo para um correto entendimento a respeito do arrependimento. Quando a graça acontece, acaba toda e qualquer compensação, pois a graça de Deus - somente a graça - sempre é graça em abundância.

P. Dr. Ricardo Willy Rieth, Pastor ordenado da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), é graduado em Teologia e Ciências Sociais e pós-graduado em História da Igreja. Entre 1992 e 2010, foi Professor na Faculdades EST, em São Leopoldo, RS. Desde 2000, é Professor na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas/RS, ocupando atualmente a função de Pró-Reitor de Graduação. Desde 1993, integra, e atualmente coordena, a Comissão Editorial Obras de Lutero. Também é membro do Comitê Científico do Congresso Internacional de Pesquisa em Lutero.
 

Ultima edição

Edição impressa para folhear no computador


Baixar em PDF

Baixar em PDF


VEJA TODAS AS EDIÇÕES


Gestão Administrativa

Ser Igreja de Jesus Cristo em contexto de pandemia

Em perspectiva de balanço do ano que passou, compartilhamos, de forma adaptada e atualizada, partes da Carta Pastoral da Presidência, de Pastoras e Pastores Sinodais, publicada em agosto de 2020. A partir de março de 2020, passamos a conviver com a pandemia do Covid-19, (+)



Educação Cristã Contínua

Igreja que valoriza o Sacerdócio Geral (parte 3/3)

Desafios Com base nas atividades que estão sendo realizadas e considerando o cenário atual, a Coordenação de Educação Cristã (CEC) vislumbra os seguintes desafios para a efetivação da Meta Missionária 1 (Áreas de prioridade (+)

AÇÃO CONJUNTA
+
tema
vai_vem
pami
fe pecc
Da fé, fluem o amor e a alegria no Senhor, e, do amor, um ânimo alegre, solícito, livre para servir espontaneamente ao próximo.
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br